A análise do processo
escolar de excisão cultural a que Gramsci se refere e sobre o qual refletimos
no post anterior é retomada por uma
dupla de sociólogos franceses, Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu num livro
intitulado A Reprodução. Muito
genericamente esse livro reafirma a proposição que atribui à escola uma missão
fundamental na difusão e promoção de um tipo muito específico de cultura:
aquilo que atrás, com a intencionalidade consciente de evitar valorações
axiológicas demasiado evidentes, caracterizámos como a cultura moderna,
científica, cívica, racional, etc. O livro A
Reprodução não evita, no entanto, essa valoração, algo que está igualmente
presente na obra de Pierre Bourdieu em geral, uma obra que versa
fundamentalmente a cultura. Assim, e de acordo com este tipo de perspetivas,
existe efetivamente uma cultura legítima que corresponde, essencialmente, à
cultura das classes dominantes, com a qual a escola tem tradicionalmente
mantido um comprometimento, servindo-se de uma violência simbólica socialmente
aceite para proceder à manutenção desse mesmo domínio, agindo assim,
subliminarmente, no sentido da reprodução das estruturas sociais já consagradas.
Formas subliminares de punição, rituais de humilhação simbólica, puro
esmagamento dos alunos com o aparato do seu arsenal cultural são entendidas,
nesta ótica, como operacionalizações de uma ideologia conservadora que, no
essencial, privilegia aqueles que, por condição familiar e, mais genericamente,
origem socioeconómica, já possuem os meios de locomoção nesse universo cultural
legítimo.
Gramsci fala-nos,
através do seu conceito de hegemonia cultural, essencialmente no mesmo, com a
vantagem comparativa de o fazer de uma forma menos determinista, menos
estruturalista e, ao invés, mais dinâmica e operativa. Numa linha que mais
tarde é retomada por, por exemplo, historiadores como E. P. Thomson, Gramsci
demonstra como os privilégios das classes dominantes (esforcemo-nos, aqui, por
transcender o vocabulário marxista e estender este tipo de análises para
contextos mais abrangentes e contemporâneos) se baseiam, antes de mais, numa
supremacia simbólica: ou seja, na forma como os membros simbolicamente mais
ativos desses grupos (os seus intelectuais orgânicos) conseguem universalizar
os valores desse mesmo grupo. Os privilégios desse grupo encontram-se, deste
modo, resguardados de uma efetiva contestação por parte de outros grupos na medida
em que o que esses outros grupos gostariam era, de facto, de poder ser como o grupo
dominante. Esta universalização axiológica constitui a melhor defesa contra
outros grupos sociais (a melhor defesa é o ataque) mas, e este é um ponto fundamental
profundamente operativo, este processo nunca é estático: a legitimidade de uma
determinada cultura que se queira afirmar como legítima é, com efeito,
continuamente desafiada. A cultura, enquanto sistema aberto, é uma construção
coletiva cujo reconhecimento depende sempre da negociação. É assim na escola,
portanto, e é importante notar que o que defendi no post anterior não é a imposição inquestionada e unilateral de uma
certa forma de cultura, mas sim a abertura ao conflito e à negociação
simbólicas, bem como o direito (e, a bem dizer, o dever), por parte dos atores
nesses contextos, de lutar pelas suas próprias perspetivas culturais, pelo
poder de significar. Mas é também assim, talvez até mais assim, no campo da
educação e formação de adultos.
Assim, que tipo de
cultura levo eu, enquanto formador, aos meus formandos? Como a transmito, ou
tento transmitir? Que tipo de nexo causal se estabelece entre o significado que
dou à minha presença diante deles e a própria experiência que os trouxe até à
minha aula? Do meu lado, a cultura cosmopolita da língua inglesa, mas também a
minha própria experiência enquanto aprendente de inglês que fui (e continuo a
ser) e a forma como essa mesma experiência determina a construção que eu faço
dos objetos culturais que transmito; do lado dos formandos, uma miríade de
percursos porventura agrupáveis numa série de narrativas aparentemente
desconexas: da pura imposição superior da frequência da formação à genuína
busca de um conhecimento que possibilite a participação no tal mundo
cosmopolita que fala em inglês, passando pelas lógicas intermédias,
essencialmente pragmáticas e estratégicas, de uma procura/oferta formativa que
se precariamente se articula com a falência crescentemente notória dos
enquadramentos laborais tradicionais.
Assim a questão não
passa tanto, como advogava Malcolm Knowles, pela valorização consciente da
experiência prévia (da cultura) dos participantes adultos nos processos
educativos: a experiência prévia não necessita, na realidade, de ser
conscientemente valorizada pois ela já é, na realidade, a base operativa de
tudo. De facto, nada existe para o ser humano fora do âmbito da sua
experiência: a cultura, o aglomerado de significados em que este vive é ele
próprio consubstancial com essa mesma experiência. A educação é portanto, e por
inerência, reconfiguração simbólica da experiência, um processo de criação
cultural, porquanto a cultura mais não é do que a experiência plasmada em
símbolos. A experiência é como o ar que respiramos e, que eu saiba, as pessoas
respiram diariamente sem estacar reverentemente diante desse fantástico ato que
é respirar. A importância da experiência é, assim, fulcral, mas este reconhecimento
só se revela efetivamente operativo se conduzir a uma prática pedagógica do
confronto experiencial, a uma pedagogia da abertura à experiência diferente, à
concreta interação entre sujeitos com experiências diferentes: em suma, ao jogo
simbólico de culturas diferentes. Se, num contexto de formação de adultos,
houver (como, em princípio, deve haver) uma conceção minimamente democrática do
espaço educativo, essa experiência emergirá naturalmente: as pessoas trá-la-ão
à baila à medida que exprimem a sua própria cultura, e fá-lo-ão de uma forma
mais significativa do que se a tal fossem quase obrigadas pelo formador.
Não é necessário,
portanto, enquanto formador ou professor, reverenciar a experiência do aluno ou
do formando: ele saberá fazê-lo sozinho e, dado que a condição humana pressupõe
necessariamente um mínimo de narcisismo, forçosamente já o fará. A aprendizagem
e, no sentido mais lato, a educação nascem do confronto com tudo o que nos é
intrinsecamente outro, e é supérfluo apelar à articulação do eu no propiciar
desse confronto: afinal, o que é que formando tem, face à alteridade daquilo
que o formador representa, senão ele próprio? Se a educação é orgânica é
necessariamente a partir das ramificações experienciais do sujeito que se educa
que ela procede quando estas, na necessidade de acomodar novas experiências, se
mobilizam por inteiro.
Também a lógica da
reprodução proposta por Bourdieu & Passeron comete o erro de subestimar
claramente esse potencial criativo dos sujeitos. E, na realidade, esse
potencial é tanto mais estimulado quanto mais esses mesmos sujeitos se
depararem com figurações culturais que lhe são outras. No filme 2001: Odisseia
no Espaço o momento em que o macaco se transforma em Homem é concentrado numa
curta sequência em que, diante de um grupo de símios, aparece um grande paralelepípedo
aparentemente de pedra. Quem o colocou ali não sabemos, ainda que possamos
imaginar uma espécie alienígena de educadores intergalácticos que, notando
potencial em espécies simbolicamente menos desenvolvidas, espalham este tipo de
artefactos um pouco por todo o lado. Inicialmente aterrados pela presença de um
objeto tão estranho e tão evidentemente artificial,
tão alheio ao mundo de formas casuais
que os macacos habitam, os símios aproximam-se cautelosamente do mesmo,
acabando por tocá-lo em conjunto. Na sequência seguinte um macaco, cuja cabeça
foi posta em andamento pela visão estranha do paralelepípedo, aprende, a partir
de ossos, a fazer uma arma com a qual derrota um grupo de macacos vizinhos. Na
famosa cena seguinte do match-cut (o osso que se transforma numa nave espacial)
resume-se a odisseia humana. Certamente que a aparição do paralelepípedo foi de
uma extrema violência simbólica: mas valeu a pena, não?
Referências:
GRAMSCI, Antonio (1971). Selections from the Prison Notebooks. London: Lawrence & Wishart
BOURDIEU, P., & PASSERON, J.-C. (1970). La Reproduction - éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris: Les Éditions de Minuit.
KUBRICK, Stanley (Realizador) (1968). 2001: A Space Odissey [Filme]