notas de campo de um formador

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Reprodução, Hegemonia Cultural e Confronto com a Alteridade



A análise do processo escolar de excisão cultural a que Gramsci se refere e sobre o qual refletimos no post anterior é retomada por uma dupla de sociólogos franceses, Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu num livro intitulado A Reprodução. Muito genericamente esse livro reafirma a proposição que atribui à escola uma missão fundamental na difusão e promoção de um tipo muito específico de cultura: aquilo que atrás, com a intencionalidade consciente de evitar valorações axiológicas demasiado evidentes, caracterizámos como a cultura moderna, científica, cívica, racional, etc. O livro A Reprodução não evita, no entanto, essa valoração, algo que está igualmente presente na obra de Pierre Bourdieu em geral, uma obra que versa fundamentalmente a cultura. Assim, e de acordo com este tipo de perspetivas, existe efetivamente uma cultura legítima que corresponde, essencialmente, à cultura das classes dominantes, com a qual a escola tem tradicionalmente mantido um comprometimento, servindo-se de uma violência simbólica socialmente aceite para proceder à manutenção desse mesmo domínio, agindo assim, subliminarmente, no sentido da reprodução das estruturas sociais já consagradas. Formas subliminares de punição, rituais de humilhação simbólica, puro esmagamento dos alunos com o aparato do seu arsenal cultural são entendidas, nesta ótica, como operacionalizações de uma ideologia conservadora que, no essencial, privilegia aqueles que, por condição familiar e, mais genericamente, origem socioeconómica, já possuem os meios de locomoção nesse universo cultural legítimo.  
Gramsci fala-nos, através do seu conceito de hegemonia cultural, essencialmente no mesmo, com a vantagem comparativa de o fazer de uma forma menos determinista, menos estruturalista e, ao invés, mais dinâmica e operativa. Numa linha que mais tarde é retomada por, por exemplo, historiadores como E. P. Thomson, Gramsci demonstra como os privilégios das classes dominantes (esforcemo-nos, aqui, por transcender o vocabulário marxista e estender este tipo de análises para contextos mais abrangentes e contemporâneos) se baseiam, antes de mais, numa supremacia simbólica: ou seja, na forma como os membros simbolicamente mais ativos desses grupos (os seus intelectuais orgânicos) conseguem universalizar os valores desse mesmo grupo. Os privilégios desse grupo encontram-se, deste modo, resguardados de uma efetiva contestação por parte de outros grupos na medida em que o que esses outros grupos gostariam era, de facto, de poder ser como o grupo dominante. Esta universalização axiológica constitui a melhor defesa contra outros grupos sociais (a melhor defesa é o ataque) mas, e este é um ponto fundamental profundamente operativo, este processo nunca é estático: a legitimidade de uma determinada cultura que se queira afirmar como legítima é, com efeito, continuamente desafiada. A cultura, enquanto sistema aberto, é uma construção coletiva cujo reconhecimento depende sempre da negociação. É assim na escola, portanto, e é importante notar que o que defendi no post anterior não é a imposição inquestionada e unilateral de uma certa forma de cultura, mas sim a abertura ao conflito e à negociação simbólicas, bem como o direito (e, a bem dizer, o dever), por parte dos atores nesses contextos, de lutar pelas suas próprias perspetivas culturais, pelo poder de significar. Mas é também assim, talvez até mais assim, no campo da educação e formação de adultos.
Assim, que tipo de cultura levo eu, enquanto formador, aos meus formandos? Como a transmito, ou tento transmitir? Que tipo de nexo causal se estabelece entre o significado que dou à minha presença diante deles e a própria experiência que os trouxe até à minha aula? Do meu lado, a cultura cosmopolita da língua inglesa, mas também a minha própria experiência enquanto aprendente de inglês que fui (e continuo a ser) e a forma como essa mesma experiência determina a construção que eu faço dos objetos culturais que transmito; do lado dos formandos, uma miríade de percursos porventura agrupáveis numa série de narrativas aparentemente desconexas: da pura imposição superior da frequência da formação à genuína busca de um conhecimento que possibilite a participação no tal mundo cosmopolita que fala em inglês, passando pelas lógicas intermédias, essencialmente pragmáticas e estratégicas, de uma procura/oferta formativa que se precariamente se articula com a falência crescentemente notória dos enquadramentos laborais tradicionais.
Assim a questão não passa tanto, como advogava Malcolm Knowles, pela valorização consciente da experiência prévia (da cultura) dos participantes adultos nos processos educativos: a experiência prévia não necessita, na realidade, de ser conscientemente valorizada pois ela já é, na realidade, a base operativa de tudo. De facto, nada existe para o ser humano fora do âmbito da sua experiência: a cultura, o aglomerado de significados em que este vive é ele próprio consubstancial com essa mesma experiência. A educação é portanto, e por inerência, reconfiguração simbólica da experiência, um processo de criação cultural, porquanto a cultura mais não é do que a experiência plasmada em símbolos. A experiência é como o ar que respiramos e, que eu saiba, as pessoas respiram diariamente sem estacar reverentemente diante desse fantástico ato que é respirar. A importância da experiência é, assim, fulcral, mas este reconhecimento só se revela efetivamente operativo se conduzir a uma prática pedagógica do confronto experiencial, a uma pedagogia da abertura à experiência diferente, à concreta interação entre sujeitos com experiências diferentes: em suma, ao jogo simbólico de culturas diferentes. Se, num contexto de formação de adultos, houver (como, em princípio, deve haver) uma conceção minimamente democrática do espaço educativo, essa experiência emergirá naturalmente: as pessoas trá-la-ão à baila à medida que exprimem a sua própria cultura, e fá-lo-ão de uma forma mais significativa do que se a tal fossem quase obrigadas pelo formador.
Não é necessário, portanto, enquanto formador ou professor, reverenciar a experiência do aluno ou do formando: ele saberá fazê-lo sozinho e, dado que a condição humana pressupõe necessariamente um mínimo de narcisismo, forçosamente já o fará. A aprendizagem e, no sentido mais lato, a educação nascem do confronto com tudo o que nos é intrinsecamente outro, e é supérfluo apelar à articulação do eu no propiciar desse confronto: afinal, o que é que formando tem, face à alteridade daquilo que o formador representa, senão ele próprio? Se a educação é orgânica é necessariamente a partir das ramificações experienciais do sujeito que se educa que ela procede quando estas, na necessidade de acomodar novas experiências, se mobilizam por inteiro.
Também a lógica da reprodução proposta por Bourdieu & Passeron comete o erro de subestimar claramente esse potencial criativo dos sujeitos. E, na realidade, esse potencial é tanto mais estimulado quanto mais esses mesmos sujeitos se depararem com figurações culturais que lhe são outras. No filme 2001: Odisseia no Espaço o momento em que o macaco se transforma em Homem é concentrado numa curta sequência em que, diante de um grupo de símios, aparece um grande paralelepípedo aparentemente de pedra. Quem o colocou ali não sabemos, ainda que possamos imaginar uma espécie alienígena de educadores intergalácticos que, notando potencial em espécies simbolicamente menos desenvolvidas, espalham este tipo de artefactos um pouco por todo o lado. Inicialmente aterrados pela presença de um objeto tão estranho e tão evidentemente artificial, tão alheio ao mundo de formas casuais que os macacos habitam, os símios aproximam-se cautelosamente do mesmo, acabando por tocá-lo em conjunto. Na sequência seguinte um macaco, cuja cabeça foi posta em andamento pela visão estranha do paralelepípedo, aprende, a partir de ossos, a fazer uma arma com a qual derrota um grupo de macacos vizinhos. Na famosa cena seguinte do match-cut (o osso que se transforma numa nave espacial) resume-se a odisseia humana. Certamente que a aparição do paralelepípedo foi de uma extrema violência simbólica: mas valeu a pena, não?  

Referências:

GRAMSCI, Antonio (1971). Selections from the Prison Notebooks. London: Lawrence & Wishart

BOURDIEU, P., & PASSERON, J.-C. (1970). La Reproduction - éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris: Les Éditions de Minuit.

KUBRICK, Stanley (Realizador) (1968). 2001: A Space Odissey [Filme]

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Educação e Cultura(s): um Conflito (Desejável)


                Uma das críticas mais habituais à teoria andragógica de Malcolm Knowles é a forma algo limitada como este autor concebe a ideia de experiência: com efeito a andragogia, na sua tentativa de valorizar a experiência que os adultos trazem consigo acaba, numa oposição claramente exagerada, por remeter as crianças para uma espécie de limbo pré-experiencial, como se estas mais não fossem do que uma tábua rasa na qual os adultos são livres de escrever o que lhes apetecer. Em boa medida Knowles construiu a andragogia contra a pedagogia, caindo no pouco recomendável hábito intelectual de definir uma coisa com base na negação de outra. De facto as crianças trazem consigo, tal como os adultos, um reservatório experiencial que, como na idade madura, contribui ativamente para a sua definição identitária e que, como tal, elas estão dispostas a defender contra aqueles que a atacam.
            Assim, e a propósito destas considerações, recordei-me dos meus dias enquanto professor de AECs, muito em particular de uma escola primária situada numa freguesia rural do concelho de Leiria. Já tinha, na altura, alguma experiência de aulas com crianças da primária: em tempos, quando jogava num clube desportivo, dei aulas de xadrez em diversas escolas do 1.º ciclo do ensino básico ao abrigo de uma iniciativa cuja intenção principal era recrutar novos xadrezistas. Havia, no entanto face à minha posição em Leiria, uma diferença fundamental de que rapidamente me apercebi: enquanto que, como professor de xadrez, o meu papel na escola se distinguia claramente do do professor propriamente dito, já enquanto professor de AECs eu era plenamente professor: uma figura tão facilmente identificável com a clássica autoridade do mestre-escola como o docente que aqueles alunos tinham diariamente pela frente, e ainda com a dificuldade acrescida de se ser visto pelos alunos como professor de segunda, como professor simbolicamente deslegitimado, um professor meio a brincar. Para cúmulo, eu era professor de inglês, uma disciplina de livros, cadernos e lápis, o que me tornava ainda mais chato do que o tipo que ia lá dar música ou educação física.
  Essa diferença estendia-se naturalmente às aulas: de facto, e se as sessões de prática de xadrez eram uma fuga ao quotidiano escolar, já as AECs eram uma extensão do mesmo; nelas o que eu trazia era uma aula propriamente dita, com exercícios, leitura e escrita: em suma, trabalho. Tendo em conta o exagero escolar de que aquelas crianças já eram vítimas (no total, ao fim do dia, elas tinham mais horas de aulas do que os pais de trabalho) a ideia, constantemente repetida, de que as AECs deviam ser lúdicas soava-me como um afago de consciência algo hipócrita: se a intenção era realmente divertir os meninos muitas vezes me ocorreu que o ideal seria então, por exemplo, recuperar os tabuleiros e as peças do xadrez, ou então deixá-los simplesmente brincar no recreio, já que as crianças não precisam da ajuda dos adultos para se divertirem… Muitas vezes me ocorreu, nesses dias, uma versão ligeiramente alterada do refrão dos Pink Floyd: I’m a teacher and I wish I could leave these kids alone… As aulas, essas, eram uma lenta luta pela capacidade de impor uma direção à aula, uma arena em que eu e os alunos nos enfrentávamos simbolicamente ao longo de 45 ou 50 duros minutos, um toureio letivo em que ninguém ousava baixar a guarda por um instante.
          Tudo isto acentua aquilo que é uma característica fundamental da educação formal: a sua configuração fundamentalmente agónica. Aquilo que me passara mais ao lado quando ensinava xadrez revelava-se agora claramente: a profunda hostilidade das crianças em relação ao professor, uma hostilidade que traduzia precisamente o choque entre aquilo que eu, enquanto docente, representava e a experiência que as crianças traziam consigo. A experiência, neste contexto, pode e deve ser especificamente entendida como cultura: a cultura que eu, enquanto professor, tinha o dever de promover, aquela cultura socialmente legitimada com a qual o docente identifica a sua pessoa choca assim, inexoravelmente, com a cultura que as crianças trazem de casa. As crianças não são, portanto, e ao invés do que Knowles parece sugerir (e como qualquer incauto professor de AECs rapidamente descobrirá), tábuas rasas: bem pelo contrário, elas são ferozes defensoras das idiossincrasias nelas plasmadas principalmente por via familiar, e tanto mais ferozes quanto mais as virmos como aquilo que elas realmente são: sujeitos nas fases iniciais do processo de construção da sua própria individualidade, ou seja, seres semisselvagens, apenas superficialmente civilizados, autênticos canibais simbólicos.
   Gramsci, um pensador a que regressaremos noutras reflexões, coloca esta oposição em termos claros: “ (…) a consciência da criança não é algo individual (e muito menos individuado), ela reflete o setor da sociedade civil no qual a criança participa e as relações sociais que se formam no âmbito da sua família, da sua vizinhança, da sua aldeia, etc. A consciência da esmagadora maioria das crianças reflete relações sociais e culturais que são diferentes e mesmo antagónicas em relação àquelas que estão representadas nos currícula escolares.” (Gramsci, 1971, p. 35). Nada, mas absolutamente nada daquilo que um professor possa ter para dizer tem, por definição, um interesse inerente para a criança: o interesse consciente da criança passa unicamente pelos seus fins estritamente egoístas, e os únicos agentes que, até essa fase, conseguiram vergá-la parcialmente foram os pais que o fizeram, na maior parte dos casos, com objetivos que não coincidem praticamente em nada com os da escola.
  Assim, a ideia, correntemente tão badalada, de uma escola harmoniosamente inserida na comunidade, em que professores e pais agem concertadamente com o objetivo de promover o desenvolvimento pedagógico de um aluno que, inserido numa cultura de mérito e de solidariedade, saberá construir o sucesso a que tem direito deve ser denunciada como aquilo que ela efetivamente é: mais do que uma inocente utopia, uma mistificação consciente, ou uma tentativa de impor uma capa ideológica una a uma instituição que, desde o seu nascimento, esteve no centro de todos os fogos cruzados que atravessam a sociedade. Essa mistificação é tanto mais perniciosa quanto mais está inconscientemente implicada na deslegitimação simbólica do professor. Duas discussões interligadas, a da violência em meio escolar e a da autoridade dos professores, partem assim de uma premissa errada: a de que a escola é um local no qual a violência não deve entrar. De facto entra, sempre entrou: o conflito, e a violência que dele emerge, são inerentes à própria anatomia do objeto escolar. Na configuração de uma qualquer intencionalidade estatal (e a escola é um instrumento da vontade coletiva personificada no estado) há sempre o gérmen de uma violência sobre o indivíduo: uma violência que, contudo, vamos continuamente legitimando no exercício de uma cidadania ativa no quadro de uma sociedade democrática. Afinal, quem nunca sentiu um leve frisson de medo ao ser interpelado por um GNR numa operação stop? E não é, no entanto, por isso que deixamos de reconhecer ao guarda (ao agente da autoridade como comummente lhe chamamos e como também poderíamos chamar ao professor) a legitimidade de nos mandar parar para verificar os documentos do carro, para nos fazer soprar no balão ou mesmo para nos multar, se para isso houver motivo.
Do mesmo modo a violência, habitualmente (e desejavelmente) apenas simbólica, está presente na forma como a escola extirpa dos alunos a sua cultura tradicional, de transmissão essencialmente familiar, para no lugar desta introduzir uma nova cultura: a cultura moderna, científica, cosmopolita e racional, a cultura de um estado-nação contemporâneo, a cultura cívica de uma sociedade democrática. Esta cesura, esta verdadeira intervenção cirúrgica cultural é, para um aluno que se inicia na prática das letras e dos números, tanto mais brutal quanto menos escolarizada for a sua família, quantos menos livros houver lá por casa, quanto mais rural, e menos urbano, for o local em que vive, quanto menos o trabalho dos pais tiver a ver com a escrita ou a leitura. Não é surpreendente, portanto, que os alunos e, a maior parte das vezes, os seus pais, vejam o professor, a escola e a cultura que estes personificam como uma ameaça à sustentação simbólica do seu modo de vida. Na maior parte dos casos, para a generalidade dos portugueses de hoje (ainda), o mundo da vida e o mundo da escola pouco ou nada têm a ver um com o outro, antes são realidades inteiramente separadas. Para estas pessoas “[n]ão há nenhuma unidade entre a escola e a vida e, como tal, não há nenhuma unidade automática entre a instrução e a educação” (Gramsci, 1971, p. 35). A correspondência para que Gramsci nesta citação aponta entre, por um lado, a instrução e a escola e, por outro, a educação e a vida é certeira: de facto, o modo predominante de desenvolvimento do indivíduo na escola é a instrução, ao passo que à vida fora dela corresponde, no seu sentido mais pleno, a educação, tida enquanto contínuo crescimento orgânico da experiência. Para que estas duas realidades se interliguem, para que à instrução na infância se suceda a educação na idade adulta é, no entanto, necessária uma forma explícita de mediação cultural: é essa, em suma, a tarefa do professor. Para conseguir executá-la adequadamente este deve, assim, “estar consciente do tipo de cultura e sociedade que representa e do tipo de cultura e sociedade representadas pelos seus alunos, bem como da sua obrigação de acelerar e regular a formação da criança em conformidade com a primeira e em conflito com a segunda” (Gramsci, 1971, pp. 35-36). A fuga a este conflito, quando ocorre (e tem ocorrido demasiadas vezes), representa nada menos do que uma deslegitimação da escola feita por si própria, uma capitulação face à ignorância, um reconhecimento implícito de que aquilo que ela tem a oferecer é genericamente equivalente, senão mesmo inferior, a qualquer outro modelo social que por aí ande. Se a própria escola desvaloriza a sua missão porquê, afinal, tanta surpresa quando se descobre que os miúdos acham melhor tentar ser famoso a cantar ou a jogar à bola do que estudar? Se a própria escola promove, nos seus livros de texto, e numa fútil tentativa de “ir ao encontro dos interesses dos alunos”, esses mesmos modelos, como não notar que ela se afunda cada vez mais ao afastar-se do seu papel de difusora da cultura letrada? É sintomático deste estado de coisas ver professores a tentar perceber do que é que os seus alunos gostam, não percebendo que eles apenas gostam, como é evidente, daquilo que não aparece nos livros da escola: se no manual surge um texto sobre o Cristiano Ronaldo eles passam todos a gostar do Messi; se houver um exercício de preenchimento de espaços com uma canção da Rhianna eles imediatamente se convertem em fãs da Lady Gaga; e, no entretanto, os professores deixam-se apanhar como ratos no labirinto de referências culturais dos adolescentes (locais onde, por inerência, eles não são bem vindos), em vez de procurar introduzi-los nas figurações culturais da tradição legítima e legitimada que a escola, em teoria, tem a função de promover (e na qual, acrescente-se, os alunos têm o direito de participar).  
Continuando a utilizar vocabulário gramsciano, o professor é um intelectual orgânico, ou seja, um fulcro de criação de significado envolvido numa luta contínua pela supremacia significativa num contexto de interação social concreto: a escola. Qualquer recuo nesse poder de significação cria um vazio que os alunos imediatamente preenchem com outros significados que eles criam com o objetivo de subverter os significados veiculados pelo professor. A esse respeito, os alunos de hoje são, importa dizê-lo, incomparavelmente mais sofisticados do que os de outrora: se estes se limitavam a criar espaços de significação alternativa, pequenos grãos de areia na engrenagem significativa do espaço letivo, hoje os miúdos, habituados que estão, num ambiente muito mais comunicativo, ao debate educativo, sabem utilizar a cultura docente contra os próprios professores e tornam-se crescentemente exímios na instrumentalização de um certo tipo de discurso pedagógico hegemónico na sabotagem quotidiana da legítima função da escola. É, enfim, o resultado lógico da “colocação do aluno no centro do processo educativo”, um dogma pós-moderno que, na sua desenvoltura bem-sonante, nunca mostra a sua contrapartida lógica: nomeadamente que, por este caminho, a educação será, a muito curto prazo, ela própria remetida para a periferia do processo educativo.

Bibliografia:

GRAMSCI, Antonio (1971). Selections from the Prison Notebooks. London: Lawrence & Wishart

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Oscar Wilde sobre Educação



               "A educação é uma coisa admirável, mas é bom relembrar, de tempos a tempos, que nada do que vale a pena saber pode ser ensinado."

                in, The Critic as Artist

terça-feira, 24 de abril de 2012

Andragogia: um campo específico da educação?


Malcolm Knowles (1913-1997), teorizador norte-americano da educação de adultos, conhecido pela teoria andragógica
          
          
               Ainda que a educação seja, como já vimos, um fenómeno justificadamente aplicável à totalidade da decorrência da vida humana ela não é, de facto, completamente igual em todas as fases da mesma. Com efeito, e apesar da incontestável unidade global do campo da educação, há efetivamente algumas características mais vincadas na educação de adultos em relação à educação das crianças e jovens. Esse conjunto de características justifica, segundo diversos autores, uma delimitação mais restrita de um campo de educação de adultos com a criação efetiva de um nome próprio para uma arte pedagógica específica do educador de pessoas adultas: a andragogia. Um dos principais contribuidores para a teoria andragógica, Malcolm Knowles, definiu-a (Knowles, 1973, pp. 45-9) como assentando em quatro pressupostos teóricos principais.
             O primeiro destes pressupostos prende-se com o autoconceito que o adulto tem de si próprio, fundamentalmente diferente do de uma criança ou jovem na medida da consciência que o adulto tem de si enquanto ser autodirigido e independente. Métodos educativos que neguem ao adulto um grau relativamente elevado de controlo da aprendizagem suscitarão, como tal, resistências e ressentimentos em relação à mesma.
            A segunda pressuposição está diretamente relacionada com o critério experiencial de Dewey (a), atrás explorado, e parte da ideia de que o adulto, enquanto reservatório de uma determinada experiência de vida é, ele próprio, o seu principal recurso educativo, porquanto a sua base experiencial lhe permite relacionar e encadear mais facilmente novas experiências educativas. Tal implica que as aproximações pedagógicas aos adultos devem estar tendencialmente centradas na mobilização da reflexividade ancorada na experiência prévia do adulto, com uma ênfase particular na transferência e aplicação de saberes. Por outro lado a experiência tem, nos adultos, uma profunda implicação identitária, pelo que valorizá-la equivale a valorizar o próprio aprendente adulto.
             Em terceiro lugar, a necessidade de aprender surge, nos adultos, a partir de necessidades concretas da sua vida quotidiana. Ao invés das crianças e jovens, para quem a aprendizagem radica numa lógica prospetiva, os adultos aprendem com base numa motivação mais imediatista, e em função de problemas e desafios do presente que lhes surgem, habitualmente, no contexto da sua ação social. Esta assunção relaciona-se profundamente com o quarto pressuposto, que em função do anterior, propõe abordagens educativas mais baseadas na resolução de problemas do que na exposição de conteúdos.
            A aproximação andragógica não é, no entanto, consensual, sendo comummente acusada de padecer de um maniqueísmo radical face à pedagogia. Não cremos, no entanto, que o seu valor se esgote, como afirma Canário (2008, pp. 134-5), no contexto histórico da afirmação da educação de adultos como campo teórico-profissional distinto e separado da forma escolar. De facto, e como todas as generalizações teóricas, a andragogia de Knowles é também, na lógica weberiana dos tipos-ideais, uma construção concetual que não encontra correspondentes empíricos exatos. De facto, a educação é um continuum, não uma série de muros, e a caracterização andragógica do aprendente adulto é precisamente, nesse sentido, essencialmente tendencial. Nem sempre, por exemplo, as matérias ou mensagens a transmitir educativamente podem ser abordadas exclusivamente através de metodologias baseadas na resolução de problemas: nem sempre as formas culturais e os códigos do conhecimento estão imediatamente abertos à livre construção simbólica, porquanto normalmente a compreensão dos mesmos exige a posse prévia de algumas unidades significativas básicas. Num artigo recente, um autor francês chamava a atenção para a forma como a autonomia, tantas vezes propalada como a ‘nova utopia’, amiúde serve para justificar novas distopias e para legitimar as exclusões de sempre (Molènat, 2010). Antes de passar ao adulto uma parte substancial da responsabilidade da sua própria aprendizagem é importante ter em conta se ele possui as ferramentas concetuais e os instrumentos simbólicos que lhe permitam construir-se mais autonomamente como sujeito educativo. É neste sentido que a não-diretividade, aplicada à educação e formação de adultos, pode não querer dizer, por exemplo, que é ao aprendente que cabe a gestão absoluta daquilo que aprende: de facto, o radicalismo da completa autonomia é tão pernicioso como a educação tradicional nas suas piores manifestações. Um modelo andragógico consciente aponta, ao invés, para modalidades de educação mais negociadas, em que os momentos educativos são essencialmente o produto de uma construção coletiva continuamente feita entre formador e formandos (e entre estes, também).
           Também o conceito de ‘experiência’, como ele é abordado por Knowles, pode ser mal interpretado. Não se trata, com efeito, de avaliar implicitamente como inferiores as experiências da infância, até porque as experiências prévias do adulto podem também ser essencialmente deseducativas e, como tal, pouco valorizáveis em si mesmas. A noção andragógica de experiência é certamente melhor entendida se a virmos à luz do conceito pós-moderno de reflexividade, enquanto recurso de construção identitária. Também a este nível, a andragogia merece alguns reparos. Knowles certamente exagera no radicalismo da separação entre a infância e a idade adulta, assumindo uma quebra evidente entre ambos que é de natureza essencialmente identitária. Talvez, no seu tempo, enquadramentos sociais mais rígidos fizessem crer ao adulto que as suas principais questões identitárias estavam resolvidas quando este assumia um determinado conjunto de responsabilidades sociais; hoje, no entanto, a idade adulta é tão dada a crises identitárias como a adolescência, pelo que podemos, de facto, assumir que a construção identitária é uma tarefa para a vida toda.


           (a) Recordemos, a este propósito, a definição que Dewey dá de educação: “a reconstrução ou reorganização da experiência que acrescenta ao significado da experiência e que aumenta a capacidade de comandar o rumo da experiência subsequente” (Dewey, 2011 [1916], p. 45).


                  Bibliografia:

                 CANÁRIO, R. (2008). Educação de Adultos - Um Campo e uma Problemática. Lisboa: Educa.

                  DEWEY, John (2011 [1916]). Democracy and Education. New York: The Free Press

            KNOWLES, M. (1973). The Adult Learner: A Neglected Species. Houston: Gulf Publishing Company.

                   MOLÈNAT, X. (Novembro de 2010). L'Autonomie, Nouvelle Utopie. Sciences Humaines.

terça-feira, 13 de março de 2012

Educação de Adultos?!


                Aqui há uns tempos, numa conversa casual com um formando, este perguntava-me o que é que eu estava a estudar na universidade. À minha resposta, Educação de Adultos, o formando reagiu com uma expressão pensativa, revirando os olhos para cima como quem tenta imaginar um objeto distante e estranho. Deve ser uma coisa interessante, acabou por comentar. Perante o meu esclarecimento de que Educação de Adultos era precisamente o que tínhamos vindo a fazer ao longo das sessões de formação que eu dinamizava e ele frequentava, pelo que ele próprio, enquanto formando, estaria em posição de dizer se era, ou não, interessante, este ficou notoriamente confuso: não, o que temos feito é formação, é diferente… Não, não é diferente. Haverá, certamente, formações que não são educação. Certamente terão objetivos e métodos inteiramente diferentes daqueles que me orientam. No meu caso, e no âmbito particular daquilo que ensino, aquilo que faço só pode mesmo ser educação.
                Vários fatores podem explicar a perplexidade do meu formando: o mais importante é de natureza sociológica. De facto desde os séculos XVII e XVIII tem-se consolidado, a par da própria ideia de infância, a delimitação de um espaço social destinado às crianças. Esse espaço é, naturalmente, o espaço da educação, tido como uma instância de preparação para as exigências da vida adulta em sociedade. A educação acabaria, assim, por ser reduzida a uma relação de sinonímia com a escola. Nada contra a escola, entenda-se: no entanto, a educação é muito maior que ela. A outra ideia, a de preparação, é igualmente errada. De facto, qualquer pessoa adulta sabe que a vida é demasiado complexa e imprevisível para que uns meros anos de escolarização nos preparem para ela. Mas a ideia sofre de uma enfermidade ainda pior: a noção implícita de que a vida é uma coisa que está algures no futuro, à nossa espera e que, de certo modo, já está definida, cabendo-nos a nós, pupilos obedientes, prepararmo-nos para ela. Assim, findos os anos dedicados à educação, receberíamos um atestado de maturidade que nos abriria um lugar na sociedade condicente com o nosso desempenho escolar: fim de história.
                De facto, a educação é muito mais do que isto (e a história, diga-se de passagem, muito mais longa e complicada). O quê, concretamente? John Dewey, claramente um empirista, propõe uma definição de educação que se baseia no critério da experiência humana. A educação é, nas palavras do filósofo americano a reconstrução ou reorganização da experiência que acrescenta ao significado da experiência e que aumenta a capacidade de comandar o rumo da experiência subsequente (Dewey, 2011 [1916], p. 45). A esta constante reestruturação experiencial preside um objetivo profundamente orgânico e intimamente impresso na natureza humana: crescer. A questão que se coloca é a seguinte: há um limite para o crescimento? Há algum momento na vida humana em que se chega a um ponto máximo de maturidade? Há algum standard social de ajustamento individual a partir do qual qualquer procura de aperfeiçoamento seja injustificada? Não, obviamente não. De facto, o adulto está, face à criança, numa posição absolutamente privilegiada para proceder à constante reestruturação significativa da experiência que constitui a educação. Por um lado, o adulto dispõe de um manancial de experiência que nenhuma criança possui; por outro, beneficia de uma integração social que lhe fornece muitas mais oportunidades de reorganização reflexiva da mesma. A educação, na sua aceção plena, é um conceito que parece muito mais talhado para os adultos do que para as próprias crianças.
                Apliquemos, portanto, a definição operativa de Dewey àquilo que eu e o meu formando tínhamos vindo a fazer ao longo das sessões de formação. Reconstrução e reorganização da experiência? Sem dúvida: todos os formandos tinham já um conhecimento estruturado da língua inglesa (experiência); recordando construções linguísticas, enquadrando conhecimentos novos e mobilizando-o com vista à sua aplicação em novos contextos os formandos reconstruiam e reorganizavam a sua experiência. A aplicação profissional daquilo que aprendiam, bem como a simulação de situações concretas de utilização da língua inglesa acrescentava ao significado experiencial daquilo que ali estávamos a fazer. Quanto à potenciação da capacidade de controlar a experiência subsequente, a simples aquisição de uma competência tão determinante como o domínio da língua oficial do mundo dos negócios fala por si. E falar, já se sabe, é existir. Penso, portanto, poder assegurar ao formando que o que andamos a fazer é mesmo educar-nos.

                Bibliografia: DEWEY, John (2011). Democracy and Education. New York: The Free Press

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Desabafo


Muito provavelmente tudo começou com uma afirmação do senhor citado aqui ao lado, Sartre, l’enfer c’est les autres. Como habitualmente acontece com estas coisas a intenção original do que foi dito é o que menos importa: há palavras naturalmente rebeldes, que se soltam como bandeiras, flutuando no vento do Zeitgeist. A assunção de que as outras pessoas são o inferno pressupõe que ao Eu, ao indivíduo, corresponde um pequeno paraíso, uma espécie de jardim francês com gnomos, arranjadinho e inviolado. Sair desse jardim é, para o homem pós-moderno, uma tortura. Podemos, quando muito, permitir aos outros que nele entrem, mas na qualidade de gnomos, com a condição de que não estraguem o alinhamento milimétrico da murta. De resto, os outros são uma desordem ameaçadora, um rol de exigências que nos distrai do essencial, o nosso pequeno e insignificante jardim individual, os nossos gnomos sorridentes que assentem aos nossos caprichos, ou seja, ficam passivamente quietos onde os pusemos.
A afirmação de Sartre é, com efeito, muito boa. Tem a languidez desprendida tão característica dos heróis pós-modernos e refina a ironia suprema de usar um símbolo da ordem tradicional no seu desmantelamento; afinal, o inferno com que se ameaçava os pecadores é apenas a ameaça ela mesma: é só não lhes ligar que o inferno desaparece. O paraíso, o único possível, é, deste modo, a solidão existencial, o existir no vazio, sem obrigações nem direitos que vão além de um estado semi-selvagem neo-rousseaouniano: uma espécie de compromisso entre o bom selvagem e os confortos da civilização, ou uma abdicação seletiva (até porque se revela sempre mais fácil abdicar das obrigações do que dos direitos…). No essencial, e acima de tudo, a felicidade é viver tão longe quanto possível dos outros, desse inferno que são os outros. Em suma, livre.
A ideia foi, em primeiro lugar, útil na libertação das consciências individuais das lealdades tradicionais; a seu tempo, no entanto, ela chegaria à política. E, nessas duas aplicações, individual e política, a ideia acabaria por se abater em cheio sobre a educação. O indivíduo triunfante passou a ser o mestre de si mesmo, obedecendo apenas à sua própria subjetividade; o mundo, e nele estão incluídos os outros, é tolerado apenas enquanto fonte de estímulos passageiros que a subjetividade individual recusa ou aceita na medida exata do prazer ou capricho do momento. O mundo exterior ao nosso pequeno jardim deixou de ser nosso: com efeito abdicámos dele, por medo ao inferno que lhe subjaz. Relações sociais, compromissos, esforço: tudo isso é pior que os diabos fumegantes da Capela Sistina. Não, o mundo serve, quando muito, para nos entreter. Nem pensar em tocar-lhe, quanto mais em embrenharmo-nos nele… A sociedade, essa, é uma seca: exige-nos impostos e trabalho e, generaliza-se a opinião, não nos dá nada em troca.
A reação a este individualismo é, no entanto, ainda mais serôdia e patética do que a sociedade que pretende mudar. Por um lado, ao unilateralismo institucionalizado contrapõe-se uma espécie de bilateralismo de circunstância. Vivemos muito fechados em nós mesmos? Então, temos de aprender a olhar as necessidades do outro (repare-se que nunca dos outros, e muito menos temos o direito de lhe exigir nada, sob pena de nos transformarmos, nós mesmos, em inferno). O individualismo condoído e vagamente afligido pelo remorso é, afinal, incapaz de olhar para lá do individualismo ofendido. Por outro lado, e como alternativa ao paroquialismo de si mesmo, propõe-se o universalismo da causa única. As injustiças do mundo indignam: pois então vivamos em indignação permanente, com uma indignação diferente por semana. Qual é a indignação do dia? Está nos jornais. A indignação passageira deste instante de aborrecimento? Está nas redes sociais, porque os jornais aborrecem ao fim de meia-hora… Quanto às causas propriamente ditas, elas fazem parte do inferno genérico que os outros são: claro que ninguém se compromete com elas para lá de um post no facebook ou, em casos de indignação mais demorada, uma eventual manif, esquecida logo após a desmobilização.
A pergunta que sobra é óbvia: isto é liberdade? Certamente que sim, mas é o tipo mais triste e impotente de liberdade que existe. Talvez seja tempo de começarmos a pensar numa espécie de liberdade menos indignada e mais construtiva… E, acima de tudo, urge reconstruir o social, e isso não se faz sem educação. Até porque se não o fizermos, se não ocuparmos o pouco que resta do espaço social, alguém o fará. E com que intenções, é preferível nem imaginar.   

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O plágio


         Regresso à questão do plágio. Para quem estuda, ou já estudou, ou se relaciona de perto com esse mundo, a questão do plágio é um tema recorrente. Para quem se aventura na escrita de uma tese (ou dissertação, como agora se diz), a sombra do plágio pode assumir proporções obsessivas, chegando-se mesmo a temer a coincidência com ideias que alguém que nunca tenhamos lido possa ter tido. Ao invés, e na maior parte dos casos, a cópia de umas coisas de uns sites escritos em português do Brasil, tida por alunos de secundário (e, por vezes, do superior) como coisa corriqueira e digna de pouca nota, acaba por minar a vontade de qualquer professor de imprimir à sua lecionação qualquer margem de liberdade e criatividade. A fraude académica é, de facto, um problema. Convém, portanto, perspetivá-lo.
         O plágio é um grande aborrecimento essencialmente porque mina a confiança necessária a qualquer relação pedagógica. Sabendo nós como o ato pedagógico constitui o início de tantos desenvolvimentos ulteriores na vida do cidadão em sociedade, e tendo em conta o estado já muito precário da confiança que resta neste mundo, é fácil pelo menos entrever as consequências a médio e longo prazo do plágio. Para que serve, perante um empregador, um diploma fraudulento? Para que serve, antes de mais, ao próprio possuidor desse diploma? Que imagem tem de si própria e da sociedade uma pessoa que passa pelos diversos níveis de ensino ludibriando os procedimentos conducentes à realização do único objetivo desses mesmos sistemas que (ainda) é (penso eu, pelo menos) aprender?
         No entanto, há muito a dizer sobre o plágio. Penso que é importante analisar o fenómeno, uma vez que será muito difícil combatê-lo sem o compreender. Isto, claro, se for efetivamente possível combatê-lo. De facto parece-me, por vezes, que não: a ligeireza com que se naturalizou, em contextos pedagógicos, a ideia da pesquisa na internet é um bom exemplo. O termo pesquisar traduz muito mais do que uma simples recolha de informação: pesquisar aproxima-se mais de investigar, de indagar, de analisar. E, no entanto, a simples apresentação de informação não tratada, através de meios que possibilitem um rápido arranjo da mesma com recurso a templates já feitas, satisfaz a generalidade das pessoas. Marshall McLuhan, um pensador dos meios de comunicação, dizia que o meio é a mensagem. Penso que os modernos alunos e estudantes se aproximam muito do radicalismo bacoco e bem-sonante deste pensador quando se obcecam com os PowerPoints arranjadinhos que não dizem nada. A ditadura da forma sobre o conteúdo manifesta-se quando, por exemplo, num trabalho de grupo se passa mais tempo a discutir cores, fontes e tamanhos do que ideias; ou quando, nas aulas finais de uma cadeira, somos sujeitos ao infindável suplício dos slides eternos. Na Suíça surgiu, há uns tempos, um partido anti-PowerPoint: creio que qualquer pessoa votaria neles após um congresso ou uma apresentação de trabalhos de grupo.
 Mas há coisas mais preocupantes, e desafios bem maiores que se colocam ao professor ou formador. Por exemplo: como explicamos a um formando que inicia a aprendizagem de uma língua estrangeira que escreve um texto na sua língua materna e o traduz depois para a língua que está a estudar no Google Translator que esse procedimento simplesmente não é aceitável? É óbvio para qualquer pessoa que assim não aprenderá nada: é-o, inclusivamente, para o próprio formando. Entra aqui, no entanto, a influência de um certo discurso legitimista das tecnologias, uma espécie de fundamentalismo das TIC, que diz: se os instrumentos existem, porque não utilizá-los? Mesmo quando as pessoas sabem que o que fazem, além de não as beneficiar do ponto de vista da aprendizagem, é fundamentalmente errado, há uma cultura generalizada da rapidez distraída que lhes permite facilmente resolver esses conflitos morais. Faz parte, afinal, dessa nebulosa geral da Pós-modernidade: o paradigma cultural em que vivemos substituiu a contemplação atenta como forma primária de consumo cultural pela distração breve. Vivemos, essencialmente, na sociedade dos três minutos: tudo aquilo cuja duração ultrapasse este espaço temporal é-nos penoso. As canções que ouvimos duram três minutos; o zapping não permite mais do que três minutos por canal (e isto é um zapping excecionalmente lento); os jornais entretêm-nos de uma estação de metro a outra; um monumento leva sensivelmente esse espaço de tempo a fotografar. Para lá desse tempo as pessoas limitam-se a utilizar os meios abreviadores de tarefas de que dispõem.
 Há uma outra característica da Pós-modernidade que poderá constituir parte da base, digamos, teórico-filosófica desta prática. Lembro-me que o meu livro de Português do 10.º ano sugeria sempre, a propósito dos autores a estudar, hipertextos. Perante um poema de Cesário Verde sugeria, por exemplo, o À une Passante de Charles Baudelaire. O hipertexto, ou a leitura em hipertexto, é uma forma corrente de leitura atual: a experiência de ler na web processa-se essencialmente assim. O hipertexto é muito mais antigo do que isso, no entanto: ele constitui, dir-se-ia mesmo, uma característica essencial da cultura. A cultura é um eterno jogo de variações. A palavra-chave é esta: variação. A cópia de algo que já existe, só por si, não constitui uma variação: não acrescente nada ao que já conhecemos. Uma variação é algo que, na revisitação de uma determinada obra, produz algo que, ainda que semelhante, é fundamentalmente diferente: Ulysses, de James Joice, não é certamente um plágio da Odisseia de Homero. Simplesmente desde o desenvolvimento da web 2.0 e da consequente explosão de conteúdos produzidos pelo utilizador, o hábito de reproduzir e partilhar conteúdos tem-se generalizado. Não é raro, ao investigar um determinado assunto, dar com o mesmo artigo republicado em vários blogues, por exemplo.
Perante estes argumentos deixo duas músicas para ouvir e refletir. A pergunta é simples: o All by Myself da Celine Dion (originalmente escrita e interpretada por um tal Eric Carmen e entretanto cantada por muita, mas mesmo muita gente) é um plágio do segundo andamento do Concerto para Piano N.º 2 (Adagio Sostenuto) do compositor russo Sergei Rachmaninoff? Alerto para o facto de Rachmaninoff ter morrido em 1943 (o que inviabiliza que tenha sido este a inspirar-se na cantora canadiana, bem como para os possíveis efeitos nefastos de ouvir baladas dos anos 90 sem proteção auditiva adequada.