notas de campo de um formador

sexta-feira, 20 de maio de 2011

Sobre a multidisciplinaridade

         Nos últimos anos tem-se assistido ao declínio da figura do especialista. É verdade que uma olhadela por uma página de anúncios de emprego parece desmentir esta afirmação, mas é igualmente ajuizado alertar para o facto de que procurar sinais de mudança social nesses lugares tão pouco recomendáveis talvez não seja a melhor opção. Um artigo da Pública de 8/5/2011 interpelava, por exemplo, o abandono de que as artes, literaturas e humanidade têm sido vítimas em favor das ciências empresariais ou da saúde; contrapunha esse texto que o que as empresas procuram com crescente frequência são perfis mistos, em que a criatividade e faculdade crítica proporcionadas pelas artes, literaturas e filosofias servem de sustentáculo a capacidades e competências de natureza mais técnica. De facto, o mundo complica-se, os desenvolvimentos sociais, económicos e científicos são cada vez mais imprevisíveis, o que ontem era um passaporte para um emprego fácil pode amanhã ser obsoleto. Começa-se, paralelamente, a compreender a importância de um conjunto de saberes que jamais perderão a sua validade: as artes, as literaturas, a filosofia, já mencionadas acima, mas também a música, a história, a política, a sociologia, a antropologia… Enquanto formos humanos, enquanto o espírito não sucumbir definitivamente ao metal, tudo isto será útil. Dá-se, então, o fenómeno habitual: em tempos de crise e incerteza, perante grandes cesuras históricas, as pessoas compreendem a importância do que é durável. E procede-se com esses blocos, à construção de novos edifícios sociais, económicos, políticos, etc.
       Chegamos, assim, ao conceito, tão em voga, de multidisciplinaridade. Qualquer equipa formativa, em qualquer entidade formadora, é “multidisciplinar”. Mas já não se trata, verdadeiramente, de criar dinâmicas de trabalho em equipa entre pessoas de áreas diferentes; de facto, as modalidades de trabalho emergentes são demasiado solitárias para isso. Trata-se, isso sim, de encorajar os indivíduos a cruzar disciplinas dentro de si mesmos. A proliferação universitária de cursos, assim como a redução da duração dos mesmos e o relaxamento dos entraves ao seu acesso não são, certamente, factores alheios a estes desenvolvimentos. O espírito de Bolonha parece-me, de resto, ser esse mesmo. Acabou o tempo das gavetas: hoje, é tempo de misturar tudo. Na esperança, diga-se de passagem, de que desse caldo saiam as novas perspectivas de que o mundo anda tão necessitado...
        O meu percurso é um exemplo disso: estudei línguas e literaturas, prossegui com estudos pós-graduados em comunicação, publicidade e marketing, frequento um mestrado em educação e equaciono já um outro em turismo e património. Obviamente que tudo isto radica numa assumpção prévia: a de o estudo e a reflexão são, mais do que armas para competir num mercado de trabalho difícil, um fermento indispensável à própria vida.
          Nada disto é, em suma, muito diferente do velho ideal humanista da educação: desenvolver o ser humano em todas as suas vertentes. A perda de importância do paradigma do especialista face a uma visão mais abrangente do indivíduo e da sociedade abre, portanto, perspectivas interessantes a quem trabalha em formação. De facto, tudo isto é duplamente verdadeiro quando se trabalha com pessoas que foram apanhadas na armadilha da especialização extrema. Tome-se o exemplo do operário têxtil que, falida a fábrica, perde o seu préstimo social e económico. O desafio, perante este tipo de público, não é menor do que encorajar a uma completa refundação do eu. Essa refundação só pode fazer-se, obviamente, através de uma reconsideração completa da visão que o formando tem do mundo. Tal processo tem, naturalmente, de ser amplo, holístico e fértil de horizontes. Dar a estas pessoas apenas um conjunto de competências úteis e eficazes é dar-lhes mais do mesmo. A estas pessoas tem, efectivamente, de se dar aquilo a que elas não tiveram acesso: formas diferentes de ver o mundo. Ao escravo ensina-se uma técnica; ao Homem, ensina-se a pensar.