notas de campo de um formador

sábado, 30 de abril de 2011

Sobre a reflexividade

         Uma das ideias mais estimulantes com que me tenho cruzado nos últimos tempos encontrei-a no livro Sociedade de Risco. O autor, Ulrich Beck, é um sociólogo alemão cujo grande contributo para o entendimento da sociedade contemporânea é o conceito de Sociedade de Risco. Segundo esta noção, o risco, nas suas diversas manifestações, é o elemento definidor das modernas sociedades industrializadas avançadas.
         Não devemos, no entanto, depreender que os riscos existenciais são um exclusivo do nosso tempo e do mundo desenvolvido. De facto, o camponês medieval vivia tanto no fio da navalha como o somali actual. O que Beck pretende salientar é que só na chamada pós-modernidade o risco se tornou um elemento de definição identitária importante. O camponês medieval nascia com o seu percurso de vida delineado, e é muito pouco credível que o somali actual possa fazer grande coisa para alterar o seu. Enquadramentos sociais e constrangimentos de diversa ordem prendem um e outro solidamente a um conjunto de certezas identitárias. No mundo desenvolvido emergem, ao invés, formas de estar e de viver diferentes, desenquadradas e largamente imprevisíveis, à medida que as referências sociais se diluem e perdem importância relativa. Casar, não casar? Hoje em dia é uma escolha, há umas décadas era um seguimento natural da vida. Ser de esquerda, de direita? Até há poucos anos um ponto de honra, hoje algo que nos define menos do que o clube de futebol com que simpatizamos. Estar empregado ou desempregado? Sabemos lá, em muitos casos, se temos ou não emprego? Vai-se tendo…
        Tudo isto são exemplos de esferas da existência humana em que pilares que pareciam sólidos se desvaneceram. Família, cultura política e de classe, enquadramento profissional são campos abertos à escolha do indivíduo. Somos tentados a pensar nisto como uma libertação, uma afirmação individualista de poder sobre si próprio, a concretização do ideal humanista de domínio pelo homem do seu próprio destino individual. Em termos sociais, pode parecer um pré-requisito para que efectivamente ocorra mobilidade social. Em larga medida, é efectivamente assim… Mas não exactamente. Por um lado, as opções acarretam riscos óbvios: o risco de escolher mal, por exemplo. Por outro, um olhar mais atento permite compreender que não chegou a ocorrer qualquer tipo de efectiva libertação individual: aligeirou-se a força de uns constrangimentos, surgiram outros tão ou mais limitativos. A família deixou de determinar percursos de vida individuais? Pois bem, cada vez mais pessoas vivem com ela até idades impensáveis há uns anos atrás. Relegámos as nossas lealdades políticas para bem longe das nossas preocupações? Bem, pode-se dizer que a política fez exactamente o mesmo connosco… Libertámo-nos das culturas profissionais e de classe? Com efeito, a percentagem dos que estão livres do próprio emprego tem vindo a aumentar…
        Tudo isto significa que o indivíduo, ainda que consciente de si próprio enquanto único modelo aceitável (e disponível) de reprodução social, necessita invariavelmente da mediação de instituições sociais para criar o seu percurso biográfico. Instituições normalmente desajustadas aos seus desejos e aspirações. Emerge, portanto, sob novos ângulos de análise sociológica, a clássica tensão entre libertação individual e constrangimento social. Dado que vivemos na era do hiper-individualismo (Lipovetsky) é sempre do lado do indivíduo que a corda parte…
     A solução apontada por Beck para a superação desta tensão é a reflexividade. Crescentemente responsabilizado pelo seu destino, ao mesmo tempo que as portas se lhe fecham, o indivíduo reflecte, a cada passo da sua biografia, sobre a forma de retirar o máximo de proveito das mínimas oportunidades que lhe são disponibilizadas. A isto se chama modernidade reflexiva.
         Pensar sobre si face ao mundo, elencar possibilidades de acção, reconstruir reflexivamente padrões biográficos, em suma, pensar. A tese de Beck é, portanto, central para o entendimento da formação. Para já, no entanto, pretendo apenas explanar, tão sucintamente como possível, esse conceito operativo fundamental que é a reflexividade. Futuramente, explorarei melhor as relações entre este e a formação.


           Bibliografia: BECK, ULRICH (1992). Risk Society – Towards a New Modernity. London: SAGE Publications