Muito
provavelmente tudo começou com uma afirmação do senhor citado aqui ao lado,
Sartre, l’enfer c’est les autres.
Como habitualmente acontece com estas coisas a intenção original do que foi
dito é o que menos importa: há palavras naturalmente rebeldes, que se soltam
como bandeiras, flutuando no vento do Zeitgeist.
A assunção de que as outras pessoas são o inferno pressupõe que ao Eu, ao
indivíduo, corresponde um pequeno paraíso, uma espécie de jardim francês com
gnomos, arranjadinho e inviolado. Sair desse jardim é, para o homem
pós-moderno, uma tortura. Podemos, quando muito, permitir aos outros que nele
entrem, mas na qualidade de gnomos, com a condição de que não estraguem o
alinhamento milimétrico da murta. De resto, os outros são uma desordem
ameaçadora, um rol de exigências que nos distrai do essencial, o nosso pequeno
e insignificante jardim individual, os nossos gnomos sorridentes que assentem
aos nossos caprichos, ou seja, ficam passivamente quietos onde os pusemos.
A afirmação de Sartre é, com efeito, muito boa. Tem a languidez desprendida tão característica dos
heróis pós-modernos e refina a ironia suprema de usar um símbolo da ordem tradicional
no seu desmantelamento; afinal, o inferno com que se ameaçava os pecadores é
apenas a ameaça ela mesma: é só não lhes ligar que o inferno desaparece. O paraíso,
o único possível, é, deste modo, a solidão existencial, o existir no vazio, sem
obrigações nem direitos que vão além de um estado semi-selvagem neo-rousseaouniano: uma espécie de compromisso entre o bom selvagem e os confortos da civilização, ou uma abdicação seletiva (até porque se revela sempre mais fácil abdicar das obrigações do que dos
direitos…). No essencial, e acima de tudo, a felicidade é viver tão longe quanto possível dos
outros, desse inferno que são os outros. Em suma, livre.
A ideia
foi, em primeiro lugar, útil na libertação das consciências individuais das
lealdades tradicionais; a seu tempo, no entanto, ela chegaria à política. E, nessas
duas aplicações, individual e política, a ideia acabaria por se abater em cheio
sobre a educação. O indivíduo triunfante passou a ser o mestre de si mesmo,
obedecendo apenas à sua própria subjetividade; o mundo, e nele estão incluídos os
outros, é tolerado apenas enquanto fonte de estímulos passageiros que a
subjetividade individual recusa ou aceita na medida exata do prazer ou capricho
do momento. O mundo exterior ao nosso pequeno jardim deixou de ser nosso: com
efeito abdicámos dele, por medo ao inferno que lhe subjaz. Relações sociais,
compromissos, esforço: tudo isso é pior que os diabos fumegantes da Capela
Sistina. Não, o mundo serve, quando muito, para nos entreter. Nem pensar em
tocar-lhe, quanto mais em embrenharmo-nos nele… A sociedade, essa, é uma seca:
exige-nos impostos e trabalho e, generaliza-se a opinião, não nos dá nada em
troca.
A reação
a este individualismo é, no entanto, ainda mais serôdia e patética do que a
sociedade que pretende mudar. Por um lado, ao unilateralismo institucionalizado
contrapõe-se uma espécie de bilateralismo de circunstância. Vivemos muito
fechados em nós mesmos? Então, temos de aprender a olhar as necessidades do outro (repare-se que nunca
dos outros, e muito menos temos o direito de lhe exigir nada, sob pena de nos
transformarmos, nós mesmos, em inferno). O individualismo condoído e vagamente afligido pelo remorso é, afinal, incapaz de olhar para lá do individualismo ofendido. Por outro lado, e como alternativa ao
paroquialismo de si mesmo, propõe-se o universalismo da causa única. As injustiças
do mundo indignam: pois então vivamos em indignação permanente, com uma
indignação diferente por semana. Qual é a indignação do dia? Está nos jornais. A
indignação passageira deste instante de aborrecimento? Está nas redes sociais,
porque os jornais aborrecem ao fim de meia-hora… Quanto às causas propriamente
ditas, elas fazem parte do inferno genérico que os outros são: claro que
ninguém se compromete com elas para lá de um post no facebook ou, em casos de
indignação mais demorada, uma eventual manif, esquecida logo após a
desmobilização.
A pergunta
que sobra é óbvia: isto é liberdade? Certamente que sim, mas é o tipo mais
triste e impotente de liberdade que existe. Talvez seja tempo de começarmos a
pensar numa espécie de liberdade menos indignada e mais construtiva… E, acima
de tudo, urge reconstruir o social, e isso não se faz sem educação. Até porque se não o fizermos, se não ocuparmos o pouco que resta do espaço social, alguém o fará. E com que intenções, é preferível nem imaginar.