notas de campo de um formador

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Narrativas e formação



         Não vou discorrer de uma forma excessivamente académica sobre o conceito. Tome-se apenas a palavra na sua acepção mais comum: narrativa significa história, sequenciação lógica e habitualmente diacrónica de eventos, acções, impressões ou até mesmo ideias. A nossa vida é uma sucessão de narrativas, que vão desde pequenos nadas que ocupam o espaço vivencial de um ou dois minutos até grandes temas que nos acompanham até à morte e mesmo, ecoando Camões, para lá da sua férrea lei.
         Este café, beberricado nesta esplanada na Foz, nesta fresca manhã portuense, é uma narrativa. Uma necessidade profissional que hoje me trouxe a esta cidade, resolvida em vinte minutos, deixou-me este pedaço de primeira manhã outonal que assim ocupo, escrevinhando e beberricando café. Mas as narrativas são orgânicas, crescem como árvores e agrupam-se em florestas. Duma narrativa nascem narrativas menores, subsidiárias da primeira: o café não está grande coisa e a colher é de chá, incomodamente grande numa chávena de café. Esta contrariedade contrasta com a narrativa habitual, segundo a qual isto é a Foz, emblema por excelência de um certo bem-estar portuense, pelo que o café deveria ser melhor do que isto. As narrativas interagem umas com as outras, confirmam-se e desmentem-se mutuamente, nutrem-se umas das outras. Podem, é claro, passar umas pelas outras de um modo quase totalmente indiferente: o casal aparentemente reformado que na mesa defronte goza a tranquilidade da manhã, ele lendo o jornal, ela completando o Sudoku, protagoniza uma narrativa que, superficialmente, nada tem a ver com a minha. E, no entanto, o olhar dela distancia-se momentaneamente do Sudoku e perde-se na linha do horizonte, indiferente ao marido, que se remexe na cadeira, quiçá incomodado por mais alguma narrativa de austeridade que lê no jornal. O que imaginará ela no horizonte atlântico? Provavelmente o mesmo que eu imaginei há minutos atrás, quando antes de começar a escrever, também perscrutei o horizonte. De facto, há narrativas que são quase categorias platónicas, vertidas directamente do mundo das ideias para a nossa cabeça. Todos vivemos mais ou menos as mesmas narrativas. Todos imaginamos mais ou menos as mesmas coisas ao olhar a linha, hoje difusa e algo vítrea, que separa o mar do céu. Todos comungamos de certos símbolos, verdadeiras praças da humanidade, nos quais nos encontramos. As narrativas são, enfim, histórias, impressões, pequenas melodias quotidianas que são a forma humana de entender o mundo, de o organizar e vivenciar, de nele existir.
          Ocorre-me isto ao pensar numa acção de formação, ocorrida há pouco menos de um ano, em que pela primeira vez, de um modo consciente e estudado, apliquei esta, chamemos-lhe assim, teoria narrativa. Esta acção havia surgido, de resto, num momento propício: já com alguma experiência de campo enquanto formador, e perante um grupo dinâmico e receptivo, permiti-me imprimir alguma liberdade criativa no desenvolvimento da acção. Era uma formação de inglês aplicado a contextos empresariais, a ocorrer in loco, ou seja, nas instalações da própria empresa. À sequência lógica dos temas a explorar (conversas telefónicas, cartas comerciais, apresentações de serviços, reclamações, etc) fui dando a consistência de uma história, montando assim um teatro em que formador e formandos eram actores. Nada disto é radicalmente inovador: os jogos de role-play sempre foram um instrumento pedagógico essencial, particularmente no campo das línguas. A novidade foi que toda a formação foi sendo configurada como um grande jogo teatral, um todo coerente, em que as pessoas tinham a oportunidade de desempenhar o papel de si próprias em contexto profissional. Verdadeiramente a única persona (no sentido latino, habitualmente traduzido como máscara ou, por extensão, personagem) ali era a minha. Subitamente eu já não era um formador: era um milionário russo (andava a estudar russo, na altura) com o qual a empresa procurava fechar um avultado negócio. O caudal de situações formativas que saíram deste simples jogo narrativo foi de tal forma dinâmico que tomou rapidamente conta de toda a acção. E tudo se passou de uma forma natural e orgânica, à medida que a história do milionário russo ia revelando outras histórias da empresa e, essencialmente, das pessoas que a constituíam. Um momento alto foi quando o russo visitou a empresa, e da sala de formação se passou aos corredores, aos escritórios, às oficinas, cumprimentando trabalhadores, mostrando produtos, contando histórias (obviamente, em inglês). Perante a narrativa as pessoas envolveram-se e agiram, e disto resultaram aprendizagens muito mais significativas. Já não se tratava de um exercício abstracto que vinha num livro: tratava-se de interagir com pessoas.
         A coesão e coerência que esta linha narrativa deu à acção foi outro dos aspectos positivos. De facto, a história começou, desenvolveu-se e terminou nas 25 horas previstas de formação. No fim, o negócio fechou-se, e a empresa conseguiu um lucrativo contrato para a iluminação (era uma empresa de fabrico e instalação de equipamentos de iluminação) de um estádio, quatro hotéis e dois centros comerciais. Investimento estrangeiro a rodos, precisamente do que estávamos a precisar… Cheguei mesmo a sentir um ligeiro sobressalto quando, no fim de uma sessão de formação, ao entrar no carro para regressar a casa, ouvi alguém dizer-me, da janela de outro carro:
         - Have a nice weekend, Mr. Yuri Freitov. See you next Tuesday!
         Podia-me ter habituado, no entanto, à minha persona de milionário russo…