Este café, beberricado nesta esplanada
na Foz, nesta fresca manhã portuense, é uma narrativa. Uma necessidade profissional
que hoje me trouxe a esta cidade, resolvida em vinte minutos, deixou-me este
pedaço de primeira manhã outonal que assim ocupo, escrevinhando e beberricando
café. Mas as narrativas são orgânicas, crescem como árvores e agrupam-se em
florestas. Duma narrativa nascem narrativas menores, subsidiárias da primeira:
o café não está grande coisa e a colher é de chá, incomodamente grande numa chávena
de café. Esta contrariedade contrasta com a narrativa habitual, segundo a qual
isto é a Foz, emblema por excelência de um certo bem-estar portuense, pelo que o
café deveria ser melhor do que isto. As narrativas interagem umas com as outras,
confirmam-se e desmentem-se mutuamente, nutrem-se umas das outras. Podem, é
claro, passar umas pelas outras de um modo quase totalmente indiferente: o
casal aparentemente reformado que na mesa defronte goza a tranquilidade da
manhã, ele lendo o jornal, ela completando o Sudoku, protagoniza uma narrativa
que, superficialmente, nada tem a ver com a minha. E, no entanto, o olhar dela
distancia-se momentaneamente do Sudoku e perde-se na linha do horizonte,
indiferente ao marido, que se remexe na cadeira, quiçá incomodado por mais alguma
narrativa de austeridade que lê no jornal. O que imaginará ela no horizonte
atlântico? Provavelmente o mesmo que eu imaginei há minutos atrás, quando antes
de começar a escrever, também perscrutei o horizonte. De facto, há narrativas
que são quase categorias platónicas, vertidas directamente do mundo das ideias
para a nossa cabeça. Todos vivemos mais ou menos as mesmas narrativas. Todos imaginamos
mais ou menos as mesmas coisas ao olhar a linha, hoje difusa e algo vítrea, que
separa o mar do céu. Todos comungamos de certos símbolos, verdadeiras praças da
humanidade, nos quais nos encontramos. As narrativas são, enfim, histórias,
impressões, pequenas melodias quotidianas que são a forma humana de entender o
mundo, de o organizar e vivenciar, de nele existir.
Ocorre-me isto ao pensar numa acção de
formação, ocorrida há pouco menos de um ano, em que pela primeira vez, de um
modo consciente e estudado, apliquei esta, chamemos-lhe assim, teoria narrativa. Esta acção havia
surgido, de resto, num momento propício: já com alguma experiência de campo
enquanto formador, e perante um grupo dinâmico e receptivo, permiti-me imprimir
alguma liberdade criativa no desenvolvimento da acção. Era uma formação de
inglês aplicado a contextos empresariais, a ocorrer in loco, ou seja, nas instalações da própria empresa. À sequência
lógica dos temas a explorar (conversas telefónicas, cartas comerciais,
apresentações de serviços, reclamações, etc) fui dando a consistência de uma
história, montando assim um teatro em que formador e formandos eram actores. Nada
disto é radicalmente inovador: os jogos de role-play
sempre foram um instrumento pedagógico essencial, particularmente no campo
das línguas. A novidade foi que toda a formação foi sendo configurada como um
grande jogo teatral, um todo coerente, em que as pessoas tinham a oportunidade
de desempenhar o papel de si próprias em contexto profissional. Verdadeiramente
a única persona (no sentido latino,
habitualmente traduzido como máscara ou, por extensão, personagem) ali era a
minha. Subitamente eu já não era um formador: era um milionário russo (andava a
estudar russo, na altura) com o qual a empresa procurava fechar um avultado
negócio. O caudal de situações formativas que saíram deste simples jogo
narrativo foi de tal forma dinâmico que tomou rapidamente conta de toda a
acção. E tudo se passou de uma forma natural e orgânica, à medida que a
história do milionário russo ia revelando outras histórias da empresa e,
essencialmente, das pessoas que a constituíam. Um momento alto foi quando o
russo visitou a empresa, e da sala de formação se passou aos corredores, aos
escritórios, às oficinas, cumprimentando trabalhadores, mostrando produtos,
contando histórias (obviamente, em inglês). Perante a narrativa as pessoas
envolveram-se e agiram, e disto resultaram aprendizagens muito mais
significativas. Já não se tratava de um exercício abstracto que vinha num
livro: tratava-se de interagir com pessoas.
A coesão e coerência que esta linha narrativa
deu à acção foi outro dos aspectos positivos. De facto, a história começou,
desenvolveu-se e terminou nas 25 horas previstas de formação. No fim, o negócio
fechou-se, e a empresa conseguiu um lucrativo contrato para a iluminação (era
uma empresa de fabrico e instalação de equipamentos de iluminação) de um
estádio, quatro hotéis e dois centros comerciais. Investimento estrangeiro a
rodos, precisamente do que estávamos a precisar… Cheguei mesmo a sentir um
ligeiro sobressalto quando, no fim de uma sessão de formação, ao entrar no
carro para regressar a casa, ouvi alguém dizer-me, da janela de outro carro:
- Have a nice weekend, Mr. Yuri Freitov. See you next Tuesday!
Podia-me
ter habituado, no entanto, à minha persona
de milionário russo…
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