notas de campo de um formador

terça-feira, 24 de abril de 2012

Andragogia: um campo específico da educação?


Malcolm Knowles (1913-1997), teorizador norte-americano da educação de adultos, conhecido pela teoria andragógica
          
          
               Ainda que a educação seja, como já vimos, um fenómeno justificadamente aplicável à totalidade da decorrência da vida humana ela não é, de facto, completamente igual em todas as fases da mesma. Com efeito, e apesar da incontestável unidade global do campo da educação, há efetivamente algumas características mais vincadas na educação de adultos em relação à educação das crianças e jovens. Esse conjunto de características justifica, segundo diversos autores, uma delimitação mais restrita de um campo de educação de adultos com a criação efetiva de um nome próprio para uma arte pedagógica específica do educador de pessoas adultas: a andragogia. Um dos principais contribuidores para a teoria andragógica, Malcolm Knowles, definiu-a (Knowles, 1973, pp. 45-9) como assentando em quatro pressupostos teóricos principais.
             O primeiro destes pressupostos prende-se com o autoconceito que o adulto tem de si próprio, fundamentalmente diferente do de uma criança ou jovem na medida da consciência que o adulto tem de si enquanto ser autodirigido e independente. Métodos educativos que neguem ao adulto um grau relativamente elevado de controlo da aprendizagem suscitarão, como tal, resistências e ressentimentos em relação à mesma.
            A segunda pressuposição está diretamente relacionada com o critério experiencial de Dewey (a), atrás explorado, e parte da ideia de que o adulto, enquanto reservatório de uma determinada experiência de vida é, ele próprio, o seu principal recurso educativo, porquanto a sua base experiencial lhe permite relacionar e encadear mais facilmente novas experiências educativas. Tal implica que as aproximações pedagógicas aos adultos devem estar tendencialmente centradas na mobilização da reflexividade ancorada na experiência prévia do adulto, com uma ênfase particular na transferência e aplicação de saberes. Por outro lado a experiência tem, nos adultos, uma profunda implicação identitária, pelo que valorizá-la equivale a valorizar o próprio aprendente adulto.
             Em terceiro lugar, a necessidade de aprender surge, nos adultos, a partir de necessidades concretas da sua vida quotidiana. Ao invés das crianças e jovens, para quem a aprendizagem radica numa lógica prospetiva, os adultos aprendem com base numa motivação mais imediatista, e em função de problemas e desafios do presente que lhes surgem, habitualmente, no contexto da sua ação social. Esta assunção relaciona-se profundamente com o quarto pressuposto, que em função do anterior, propõe abordagens educativas mais baseadas na resolução de problemas do que na exposição de conteúdos.
            A aproximação andragógica não é, no entanto, consensual, sendo comummente acusada de padecer de um maniqueísmo radical face à pedagogia. Não cremos, no entanto, que o seu valor se esgote, como afirma Canário (2008, pp. 134-5), no contexto histórico da afirmação da educação de adultos como campo teórico-profissional distinto e separado da forma escolar. De facto, e como todas as generalizações teóricas, a andragogia de Knowles é também, na lógica weberiana dos tipos-ideais, uma construção concetual que não encontra correspondentes empíricos exatos. De facto, a educação é um continuum, não uma série de muros, e a caracterização andragógica do aprendente adulto é precisamente, nesse sentido, essencialmente tendencial. Nem sempre, por exemplo, as matérias ou mensagens a transmitir educativamente podem ser abordadas exclusivamente através de metodologias baseadas na resolução de problemas: nem sempre as formas culturais e os códigos do conhecimento estão imediatamente abertos à livre construção simbólica, porquanto normalmente a compreensão dos mesmos exige a posse prévia de algumas unidades significativas básicas. Num artigo recente, um autor francês chamava a atenção para a forma como a autonomia, tantas vezes propalada como a ‘nova utopia’, amiúde serve para justificar novas distopias e para legitimar as exclusões de sempre (Molènat, 2010). Antes de passar ao adulto uma parte substancial da responsabilidade da sua própria aprendizagem é importante ter em conta se ele possui as ferramentas concetuais e os instrumentos simbólicos que lhe permitam construir-se mais autonomamente como sujeito educativo. É neste sentido que a não-diretividade, aplicada à educação e formação de adultos, pode não querer dizer, por exemplo, que é ao aprendente que cabe a gestão absoluta daquilo que aprende: de facto, o radicalismo da completa autonomia é tão pernicioso como a educação tradicional nas suas piores manifestações. Um modelo andragógico consciente aponta, ao invés, para modalidades de educação mais negociadas, em que os momentos educativos são essencialmente o produto de uma construção coletiva continuamente feita entre formador e formandos (e entre estes, também).
           Também o conceito de ‘experiência’, como ele é abordado por Knowles, pode ser mal interpretado. Não se trata, com efeito, de avaliar implicitamente como inferiores as experiências da infância, até porque as experiências prévias do adulto podem também ser essencialmente deseducativas e, como tal, pouco valorizáveis em si mesmas. A noção andragógica de experiência é certamente melhor entendida se a virmos à luz do conceito pós-moderno de reflexividade, enquanto recurso de construção identitária. Também a este nível, a andragogia merece alguns reparos. Knowles certamente exagera no radicalismo da separação entre a infância e a idade adulta, assumindo uma quebra evidente entre ambos que é de natureza essencialmente identitária. Talvez, no seu tempo, enquadramentos sociais mais rígidos fizessem crer ao adulto que as suas principais questões identitárias estavam resolvidas quando este assumia um determinado conjunto de responsabilidades sociais; hoje, no entanto, a idade adulta é tão dada a crises identitárias como a adolescência, pelo que podemos, de facto, assumir que a construção identitária é uma tarefa para a vida toda.


           (a) Recordemos, a este propósito, a definição que Dewey dá de educação: “a reconstrução ou reorganização da experiência que acrescenta ao significado da experiência e que aumenta a capacidade de comandar o rumo da experiência subsequente” (Dewey, 2011 [1916], p. 45).


                  Bibliografia:

                 CANÁRIO, R. (2008). Educação de Adultos - Um Campo e uma Problemática. Lisboa: Educa.

                  DEWEY, John (2011 [1916]). Democracy and Education. New York: The Free Press

            KNOWLES, M. (1973). The Adult Learner: A Neglected Species. Houston: Gulf Publishing Company.

                   MOLÈNAT, X. (Novembro de 2010). L'Autonomie, Nouvelle Utopie. Sciences Humaines.