notas de campo de um formador

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Reprodução, Hegemonia Cultural e Confronto com a Alteridade



A análise do processo escolar de excisão cultural a que Gramsci se refere e sobre o qual refletimos no post anterior é retomada por uma dupla de sociólogos franceses, Jean-Claude Passeron e Pierre Bourdieu num livro intitulado A Reprodução. Muito genericamente esse livro reafirma a proposição que atribui à escola uma missão fundamental na difusão e promoção de um tipo muito específico de cultura: aquilo que atrás, com a intencionalidade consciente de evitar valorações axiológicas demasiado evidentes, caracterizámos como a cultura moderna, científica, cívica, racional, etc. O livro A Reprodução não evita, no entanto, essa valoração, algo que está igualmente presente na obra de Pierre Bourdieu em geral, uma obra que versa fundamentalmente a cultura. Assim, e de acordo com este tipo de perspetivas, existe efetivamente uma cultura legítima que corresponde, essencialmente, à cultura das classes dominantes, com a qual a escola tem tradicionalmente mantido um comprometimento, servindo-se de uma violência simbólica socialmente aceite para proceder à manutenção desse mesmo domínio, agindo assim, subliminarmente, no sentido da reprodução das estruturas sociais já consagradas. Formas subliminares de punição, rituais de humilhação simbólica, puro esmagamento dos alunos com o aparato do seu arsenal cultural são entendidas, nesta ótica, como operacionalizações de uma ideologia conservadora que, no essencial, privilegia aqueles que, por condição familiar e, mais genericamente, origem socioeconómica, já possuem os meios de locomoção nesse universo cultural legítimo.  
Gramsci fala-nos, através do seu conceito de hegemonia cultural, essencialmente no mesmo, com a vantagem comparativa de o fazer de uma forma menos determinista, menos estruturalista e, ao invés, mais dinâmica e operativa. Numa linha que mais tarde é retomada por, por exemplo, historiadores como E. P. Thomson, Gramsci demonstra como os privilégios das classes dominantes (esforcemo-nos, aqui, por transcender o vocabulário marxista e estender este tipo de análises para contextos mais abrangentes e contemporâneos) se baseiam, antes de mais, numa supremacia simbólica: ou seja, na forma como os membros simbolicamente mais ativos desses grupos (os seus intelectuais orgânicos) conseguem universalizar os valores desse mesmo grupo. Os privilégios desse grupo encontram-se, deste modo, resguardados de uma efetiva contestação por parte de outros grupos na medida em que o que esses outros grupos gostariam era, de facto, de poder ser como o grupo dominante. Esta universalização axiológica constitui a melhor defesa contra outros grupos sociais (a melhor defesa é o ataque) mas, e este é um ponto fundamental profundamente operativo, este processo nunca é estático: a legitimidade de uma determinada cultura que se queira afirmar como legítima é, com efeito, continuamente desafiada. A cultura, enquanto sistema aberto, é uma construção coletiva cujo reconhecimento depende sempre da negociação. É assim na escola, portanto, e é importante notar que o que defendi no post anterior não é a imposição inquestionada e unilateral de uma certa forma de cultura, mas sim a abertura ao conflito e à negociação simbólicas, bem como o direito (e, a bem dizer, o dever), por parte dos atores nesses contextos, de lutar pelas suas próprias perspetivas culturais, pelo poder de significar. Mas é também assim, talvez até mais assim, no campo da educação e formação de adultos.
Assim, que tipo de cultura levo eu, enquanto formador, aos meus formandos? Como a transmito, ou tento transmitir? Que tipo de nexo causal se estabelece entre o significado que dou à minha presença diante deles e a própria experiência que os trouxe até à minha aula? Do meu lado, a cultura cosmopolita da língua inglesa, mas também a minha própria experiência enquanto aprendente de inglês que fui (e continuo a ser) e a forma como essa mesma experiência determina a construção que eu faço dos objetos culturais que transmito; do lado dos formandos, uma miríade de percursos porventura agrupáveis numa série de narrativas aparentemente desconexas: da pura imposição superior da frequência da formação à genuína busca de um conhecimento que possibilite a participação no tal mundo cosmopolita que fala em inglês, passando pelas lógicas intermédias, essencialmente pragmáticas e estratégicas, de uma procura/oferta formativa que se precariamente se articula com a falência crescentemente notória dos enquadramentos laborais tradicionais.
Assim a questão não passa tanto, como advogava Malcolm Knowles, pela valorização consciente da experiência prévia (da cultura) dos participantes adultos nos processos educativos: a experiência prévia não necessita, na realidade, de ser conscientemente valorizada pois ela já é, na realidade, a base operativa de tudo. De facto, nada existe para o ser humano fora do âmbito da sua experiência: a cultura, o aglomerado de significados em que este vive é ele próprio consubstancial com essa mesma experiência. A educação é portanto, e por inerência, reconfiguração simbólica da experiência, um processo de criação cultural, porquanto a cultura mais não é do que a experiência plasmada em símbolos. A experiência é como o ar que respiramos e, que eu saiba, as pessoas respiram diariamente sem estacar reverentemente diante desse fantástico ato que é respirar. A importância da experiência é, assim, fulcral, mas este reconhecimento só se revela efetivamente operativo se conduzir a uma prática pedagógica do confronto experiencial, a uma pedagogia da abertura à experiência diferente, à concreta interação entre sujeitos com experiências diferentes: em suma, ao jogo simbólico de culturas diferentes. Se, num contexto de formação de adultos, houver (como, em princípio, deve haver) uma conceção minimamente democrática do espaço educativo, essa experiência emergirá naturalmente: as pessoas trá-la-ão à baila à medida que exprimem a sua própria cultura, e fá-lo-ão de uma forma mais significativa do que se a tal fossem quase obrigadas pelo formador.
Não é necessário, portanto, enquanto formador ou professor, reverenciar a experiência do aluno ou do formando: ele saberá fazê-lo sozinho e, dado que a condição humana pressupõe necessariamente um mínimo de narcisismo, forçosamente já o fará. A aprendizagem e, no sentido mais lato, a educação nascem do confronto com tudo o que nos é intrinsecamente outro, e é supérfluo apelar à articulação do eu no propiciar desse confronto: afinal, o que é que formando tem, face à alteridade daquilo que o formador representa, senão ele próprio? Se a educação é orgânica é necessariamente a partir das ramificações experienciais do sujeito que se educa que ela procede quando estas, na necessidade de acomodar novas experiências, se mobilizam por inteiro.
Também a lógica da reprodução proposta por Bourdieu & Passeron comete o erro de subestimar claramente esse potencial criativo dos sujeitos. E, na realidade, esse potencial é tanto mais estimulado quanto mais esses mesmos sujeitos se depararem com figurações culturais que lhe são outras. No filme 2001: Odisseia no Espaço o momento em que o macaco se transforma em Homem é concentrado numa curta sequência em que, diante de um grupo de símios, aparece um grande paralelepípedo aparentemente de pedra. Quem o colocou ali não sabemos, ainda que possamos imaginar uma espécie alienígena de educadores intergalácticos que, notando potencial em espécies simbolicamente menos desenvolvidas, espalham este tipo de artefactos um pouco por todo o lado. Inicialmente aterrados pela presença de um objeto tão estranho e tão evidentemente artificial, tão alheio ao mundo de formas casuais que os macacos habitam, os símios aproximam-se cautelosamente do mesmo, acabando por tocá-lo em conjunto. Na sequência seguinte um macaco, cuja cabeça foi posta em andamento pela visão estranha do paralelepípedo, aprende, a partir de ossos, a fazer uma arma com a qual derrota um grupo de macacos vizinhos. Na famosa cena seguinte do match-cut (o osso que se transforma numa nave espacial) resume-se a odisseia humana. Certamente que a aparição do paralelepípedo foi de uma extrema violência simbólica: mas valeu a pena, não?  

Referências:

GRAMSCI, Antonio (1971). Selections from the Prison Notebooks. London: Lawrence & Wishart

BOURDIEU, P., & PASSERON, J.-C. (1970). La Reproduction - éléments pour une théorie du système d'enseignement. Paris: Les Éditions de Minuit.

KUBRICK, Stanley (Realizador) (1968). 2001: A Space Odissey [Filme]

Sem comentários:

Enviar um comentário