Uma das críticas mais habituais à teoria andragógica de Malcolm Knowles é a forma algo limitada como este autor concebe a ideia de
experiência: com efeito a andragogia, na sua tentativa de valorizar a experiência
que os adultos trazem consigo acaba, numa oposição claramente exagerada, por
remeter as crianças para uma espécie de limbo pré-experiencial, como se estas
mais não fossem do que uma tábua rasa na qual os adultos são livres de escrever
o que lhes apetecer. Em boa medida Knowles construiu a andragogia contra a
pedagogia, caindo no pouco recomendável hábito intelectual de definir uma coisa
com base na negação de outra. De facto as crianças trazem consigo, tal como os
adultos, um reservatório experiencial que, como na idade madura, contribui
ativamente para a sua definição identitária e que, como tal, elas estão
dispostas a defender contra aqueles que a atacam.
Assim, e a propósito destas considerações,
recordei-me dos meus dias enquanto professor de AECs, muito em particular de uma
escola primária situada numa freguesia rural do concelho de Leiria. Já tinha,
na altura, alguma experiência de aulas com crianças da primária: em tempos,
quando jogava num clube desportivo, dei aulas de xadrez em diversas escolas do
1.º ciclo do ensino básico ao abrigo de uma iniciativa cuja intenção principal era
recrutar novos xadrezistas. Havia, no entanto face à minha posição em Leiria,
uma diferença fundamental de que rapidamente me apercebi: enquanto que, como
professor de xadrez, o meu papel na escola se distinguia claramente do do
professor propriamente dito, já enquanto professor de AECs eu era plenamente
professor: uma figura tão facilmente identificável com a clássica autoridade do
mestre-escola como o docente que aqueles alunos tinham diariamente pela frente,
e ainda com a dificuldade acrescida de se ser visto pelos alunos como professor
de segunda, como professor simbolicamente deslegitimado, um professor meio a
brincar. Para cúmulo, eu era professor de inglês, uma disciplina de livros,
cadernos e lápis, o que me tornava ainda mais chato do que o tipo que ia lá dar
música ou educação física.
Essa
diferença estendia-se naturalmente às aulas: de facto, e se as sessões de
prática de xadrez eram uma fuga ao quotidiano escolar, já as AECs eram uma
extensão do mesmo; nelas o que eu trazia era uma aula propriamente dita, com
exercícios, leitura e escrita: em suma, trabalho. Tendo em conta o exagero escolar
de que aquelas crianças já eram vítimas (no total, ao fim do dia, elas tinham
mais horas de aulas do que os pais de trabalho) a ideia, constantemente
repetida, de que as AECs deviam ser lúdicas soava-me como um afago de
consciência algo hipócrita: se a intenção era realmente divertir os meninos
muitas vezes me ocorreu que o ideal seria então, por exemplo, recuperar os
tabuleiros e as peças do xadrez, ou então deixá-los simplesmente brincar no
recreio, já que as crianças não precisam da ajuda dos adultos para se divertirem…
Muitas vezes me ocorreu, nesses dias, uma versão ligeiramente alterada do
refrão dos Pink Floyd: I’m a teacher and
I wish I could leave these kids alone… As aulas, essas, eram uma lenta luta
pela capacidade de impor uma direção à aula, uma arena em que eu e os alunos
nos enfrentávamos simbolicamente ao longo de 45 ou 50 duros minutos, um toureio
letivo em que ninguém ousava baixar a guarda por um instante.
Tudo isto acentua aquilo que é uma característica
fundamental da educação formal: a sua configuração fundamentalmente agónica. Aquilo
que me passara mais ao lado quando ensinava xadrez revelava-se agora
claramente: a profunda hostilidade das crianças em relação ao professor, uma
hostilidade que traduzia precisamente o choque entre aquilo que eu, enquanto docente,
representava e a experiência que as crianças traziam consigo. A experiência,
neste contexto, pode e deve ser especificamente entendida como cultura: a
cultura que eu, enquanto professor, tinha o dever de promover, aquela cultura
socialmente legitimada com a qual o docente identifica a sua pessoa choca
assim, inexoravelmente, com a cultura que as crianças trazem de casa. As crianças
não são, portanto, e ao invés do que Knowles parece sugerir (e como qualquer
incauto professor de AECs rapidamente descobrirá), tábuas rasas: bem pelo
contrário, elas são ferozes defensoras das idiossincrasias nelas plasmadas principalmente
por via familiar, e tanto mais ferozes quanto mais as virmos como aquilo que
elas realmente são: sujeitos nas fases iniciais do processo de construção da
sua própria individualidade, ou seja, seres semisselvagens, apenas superficialmente
civilizados, autênticos canibais simbólicos.
Gramsci,
um pensador a que regressaremos noutras reflexões, coloca esta oposição em
termos claros: “ (…) a consciência da criança não é algo individual (e muito
menos individuado), ela reflete o setor da sociedade civil no qual a criança
participa e as relações sociais que se formam no âmbito da sua família, da sua
vizinhança, da sua aldeia, etc. A consciência da esmagadora maioria das
crianças reflete relações sociais e culturais que são diferentes e mesmo antagónicas
em relação àquelas que estão representadas nos currícula escolares.” (Gramsci, 1971,
p. 35). Nada, mas absolutamente nada daquilo que um professor possa ter para
dizer tem, por definição, um interesse inerente para a criança: o interesse
consciente da criança passa unicamente pelos seus fins estritamente egoístas, e
os únicos agentes que, até essa fase, conseguiram vergá-la parcialmente foram
os pais que o fizeram, na maior parte dos casos, com objetivos que não
coincidem praticamente em nada com os da escola.
Assim,
a ideia, correntemente tão badalada, de uma escola harmoniosamente inserida na
comunidade, em que professores e pais agem concertadamente com o objetivo de promover
o desenvolvimento pedagógico de um aluno que, inserido numa cultura de mérito e
de solidariedade, saberá construir o sucesso a que tem direito deve ser
denunciada como aquilo que ela efetivamente é: mais do que uma inocente utopia,
uma mistificação consciente, ou uma tentativa de impor uma capa ideológica una
a uma instituição que, desde o seu nascimento, esteve no centro de todos os
fogos cruzados que atravessam a sociedade. Essa mistificação é tanto mais
perniciosa quanto mais está inconscientemente implicada na deslegitimação simbólica
do professor. Duas discussões interligadas, a da violência em meio escolar e a da
autoridade dos professores, partem assim de uma premissa errada: a de que a
escola é um local no qual a violência não deve entrar. De facto entra, sempre
entrou: o conflito, e a violência que dele emerge, são inerentes à própria anatomia
do objeto escolar. Na configuração de uma qualquer intencionalidade estatal (e
a escola é um instrumento da vontade coletiva personificada no estado) há
sempre o gérmen de uma violência sobre o indivíduo: uma violência que, contudo,
vamos continuamente legitimando no exercício de uma cidadania ativa no quadro
de uma sociedade democrática. Afinal, quem nunca sentiu um leve frisson de medo ao ser interpelado por
um GNR numa operação stop? E não é, no entanto, por isso que deixamos de
reconhecer ao guarda (ao agente da autoridade como comummente lhe chamamos e
como também poderíamos chamar ao professor) a legitimidade de nos mandar parar para
verificar os documentos do carro, para nos fazer soprar no balão ou mesmo para
nos multar, se para isso houver motivo.
Do mesmo
modo a violência, habitualmente (e desejavelmente) apenas simbólica, está presente
na forma como a escola extirpa dos alunos a sua cultura tradicional, de
transmissão essencialmente familiar, para no lugar desta introduzir uma nova
cultura: a cultura moderna, científica, cosmopolita e racional, a cultura de um
estado-nação contemporâneo, a cultura cívica de uma sociedade democrática. Esta
cesura, esta verdadeira intervenção cirúrgica cultural é, para um aluno que se
inicia na prática das letras e dos números, tanto mais brutal quanto menos
escolarizada for a sua família, quantos menos livros houver lá por casa, quanto
mais rural, e menos urbano, for o local em que vive, quanto menos o trabalho
dos pais tiver a ver com a escrita ou a leitura. Não é surpreendente, portanto,
que os alunos e, a maior parte das vezes, os seus pais, vejam o professor, a
escola e a cultura que estes personificam como uma ameaça à sustentação
simbólica do seu modo de vida. Na maior parte dos casos, para a generalidade
dos portugueses de hoje (ainda), o mundo da vida e o mundo da escola pouco ou
nada têm a ver um com o outro, antes são realidades inteiramente separadas. Para
estas pessoas “[n]ão há nenhuma unidade entre a escola e a vida e, como tal,
não há nenhuma unidade automática entre a instrução e a educação” (Gramsci,
1971, p. 35). A correspondência para que Gramsci nesta citação aponta entre,
por um lado, a instrução e a escola e, por outro, a educação e a vida é
certeira: de facto, o modo predominante de desenvolvimento do indivíduo na
escola é a instrução, ao passo que à vida fora dela corresponde, no seu sentido
mais pleno, a educação, tida enquanto contínuo crescimento orgânico da experiência. Para que estas duas realidades se interliguem, para que à
instrução na infância se suceda a educação na idade adulta é, no entanto,
necessária uma forma explícita de mediação cultural: é essa, em suma, a tarefa
do professor. Para conseguir executá-la adequadamente este deve, assim, “estar consciente
do tipo de cultura e sociedade que representa e do tipo de cultura e sociedade
representadas pelos seus alunos, bem como da sua obrigação de acelerar e
regular a formação da criança em conformidade com a primeira e em conflito com
a segunda” (Gramsci, 1971, pp. 35-36). A fuga a este conflito, quando ocorre (e
tem ocorrido demasiadas vezes), representa nada menos do que uma deslegitimação
da escola feita por si própria, uma capitulação face à ignorância, um
reconhecimento implícito de que aquilo que ela tem a oferecer é genericamente
equivalente, senão mesmo inferior, a qualquer outro modelo social que por aí
ande. Se a própria escola desvaloriza a sua missão porquê, afinal, tanta surpresa
quando se descobre que os miúdos acham melhor tentar ser famoso a cantar ou a
jogar à bola do que estudar? Se a própria escola promove, nos seus livros de
texto, e numa fútil tentativa de “ir ao encontro dos interesses dos alunos”,
esses mesmos modelos, como não notar que ela se afunda cada vez mais ao
afastar-se do seu papel de difusora da cultura letrada? É sintomático deste
estado de coisas ver professores a tentar perceber do que é que os seus alunos
gostam, não percebendo que eles apenas gostam, como é evidente, daquilo que não
aparece nos livros da escola: se no manual surge um texto sobre o Cristiano
Ronaldo eles passam todos a gostar do Messi; se houver um exercício de
preenchimento de espaços com uma canção da Rhianna eles imediatamente se
convertem em fãs da Lady Gaga; e, no entretanto, os professores deixam-se
apanhar como ratos no labirinto de referências culturais dos adolescentes
(locais onde, por inerência, eles não são bem vindos), em vez de procurar introduzi-los
nas figurações culturais da tradição legítima e legitimada que a escola, em
teoria, tem a função de promover (e na qual, acrescente-se, os alunos têm o
direito de participar).
Continuando
a utilizar vocabulário gramsciano, o professor é um intelectual orgânico, ou
seja, um fulcro de criação de significado envolvido numa luta contínua pela supremacia
significativa num contexto de interação social concreto: a escola. Qualquer recuo
nesse poder de significação cria um vazio que os alunos imediatamente preenchem
com outros significados que eles criam com o objetivo de subverter os
significados veiculados pelo professor. A esse respeito, os alunos de hoje são,
importa dizê-lo, incomparavelmente mais sofisticados do que os de outrora: se
estes se limitavam a criar espaços de significação alternativa, pequenos grãos
de areia na engrenagem significativa do espaço letivo, hoje os miúdos,
habituados que estão, num ambiente muito mais comunicativo, ao debate
educativo, sabem utilizar a cultura docente contra os próprios professores e
tornam-se crescentemente exímios na instrumentalização de um certo tipo de discurso
pedagógico hegemónico na sabotagem quotidiana da legítima função da escola. É,
enfim, o resultado lógico da “colocação do aluno no centro do processo
educativo”, um dogma pós-moderno que, na sua desenvoltura bem-sonante, nunca
mostra a sua contrapartida lógica: nomeadamente que, por este caminho, a educação
será, a muito curto prazo, ela própria remetida para a periferia do processo
educativo.
Bibliografia:
GRAMSCI, Antonio (1971). Selections from the Prison Notebooks. London: Lawrence & Wishart
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