notas de campo de um formador

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O plágio


         Regresso à questão do plágio. Para quem estuda, ou já estudou, ou se relaciona de perto com esse mundo, a questão do plágio é um tema recorrente. Para quem se aventura na escrita de uma tese (ou dissertação, como agora se diz), a sombra do plágio pode assumir proporções obsessivas, chegando-se mesmo a temer a coincidência com ideias que alguém que nunca tenhamos lido possa ter tido. Ao invés, e na maior parte dos casos, a cópia de umas coisas de uns sites escritos em português do Brasil, tida por alunos de secundário (e, por vezes, do superior) como coisa corriqueira e digna de pouca nota, acaba por minar a vontade de qualquer professor de imprimir à sua lecionação qualquer margem de liberdade e criatividade. A fraude académica é, de facto, um problema. Convém, portanto, perspetivá-lo.
         O plágio é um grande aborrecimento essencialmente porque mina a confiança necessária a qualquer relação pedagógica. Sabendo nós como o ato pedagógico constitui o início de tantos desenvolvimentos ulteriores na vida do cidadão em sociedade, e tendo em conta o estado já muito precário da confiança que resta neste mundo, é fácil pelo menos entrever as consequências a médio e longo prazo do plágio. Para que serve, perante um empregador, um diploma fraudulento? Para que serve, antes de mais, ao próprio possuidor desse diploma? Que imagem tem de si própria e da sociedade uma pessoa que passa pelos diversos níveis de ensino ludibriando os procedimentos conducentes à realização do único objetivo desses mesmos sistemas que (ainda) é (penso eu, pelo menos) aprender?
         No entanto, há muito a dizer sobre o plágio. Penso que é importante analisar o fenómeno, uma vez que será muito difícil combatê-lo sem o compreender. Isto, claro, se for efetivamente possível combatê-lo. De facto parece-me, por vezes, que não: a ligeireza com que se naturalizou, em contextos pedagógicos, a ideia da pesquisa na internet é um bom exemplo. O termo pesquisar traduz muito mais do que uma simples recolha de informação: pesquisar aproxima-se mais de investigar, de indagar, de analisar. E, no entanto, a simples apresentação de informação não tratada, através de meios que possibilitem um rápido arranjo da mesma com recurso a templates já feitas, satisfaz a generalidade das pessoas. Marshall McLuhan, um pensador dos meios de comunicação, dizia que o meio é a mensagem. Penso que os modernos alunos e estudantes se aproximam muito do radicalismo bacoco e bem-sonante deste pensador quando se obcecam com os PowerPoints arranjadinhos que não dizem nada. A ditadura da forma sobre o conteúdo manifesta-se quando, por exemplo, num trabalho de grupo se passa mais tempo a discutir cores, fontes e tamanhos do que ideias; ou quando, nas aulas finais de uma cadeira, somos sujeitos ao infindável suplício dos slides eternos. Na Suíça surgiu, há uns tempos, um partido anti-PowerPoint: creio que qualquer pessoa votaria neles após um congresso ou uma apresentação de trabalhos de grupo.
 Mas há coisas mais preocupantes, e desafios bem maiores que se colocam ao professor ou formador. Por exemplo: como explicamos a um formando que inicia a aprendizagem de uma língua estrangeira que escreve um texto na sua língua materna e o traduz depois para a língua que está a estudar no Google Translator que esse procedimento simplesmente não é aceitável? É óbvio para qualquer pessoa que assim não aprenderá nada: é-o, inclusivamente, para o próprio formando. Entra aqui, no entanto, a influência de um certo discurso legitimista das tecnologias, uma espécie de fundamentalismo das TIC, que diz: se os instrumentos existem, porque não utilizá-los? Mesmo quando as pessoas sabem que o que fazem, além de não as beneficiar do ponto de vista da aprendizagem, é fundamentalmente errado, há uma cultura generalizada da rapidez distraída que lhes permite facilmente resolver esses conflitos morais. Faz parte, afinal, dessa nebulosa geral da Pós-modernidade: o paradigma cultural em que vivemos substituiu a contemplação atenta como forma primária de consumo cultural pela distração breve. Vivemos, essencialmente, na sociedade dos três minutos: tudo aquilo cuja duração ultrapasse este espaço temporal é-nos penoso. As canções que ouvimos duram três minutos; o zapping não permite mais do que três minutos por canal (e isto é um zapping excecionalmente lento); os jornais entretêm-nos de uma estação de metro a outra; um monumento leva sensivelmente esse espaço de tempo a fotografar. Para lá desse tempo as pessoas limitam-se a utilizar os meios abreviadores de tarefas de que dispõem.
 Há uma outra característica da Pós-modernidade que poderá constituir parte da base, digamos, teórico-filosófica desta prática. Lembro-me que o meu livro de Português do 10.º ano sugeria sempre, a propósito dos autores a estudar, hipertextos. Perante um poema de Cesário Verde sugeria, por exemplo, o À une Passante de Charles Baudelaire. O hipertexto, ou a leitura em hipertexto, é uma forma corrente de leitura atual: a experiência de ler na web processa-se essencialmente assim. O hipertexto é muito mais antigo do que isso, no entanto: ele constitui, dir-se-ia mesmo, uma característica essencial da cultura. A cultura é um eterno jogo de variações. A palavra-chave é esta: variação. A cópia de algo que já existe, só por si, não constitui uma variação: não acrescente nada ao que já conhecemos. Uma variação é algo que, na revisitação de uma determinada obra, produz algo que, ainda que semelhante, é fundamentalmente diferente: Ulysses, de James Joice, não é certamente um plágio da Odisseia de Homero. Simplesmente desde o desenvolvimento da web 2.0 e da consequente explosão de conteúdos produzidos pelo utilizador, o hábito de reproduzir e partilhar conteúdos tem-se generalizado. Não é raro, ao investigar um determinado assunto, dar com o mesmo artigo republicado em vários blogues, por exemplo.
Perante estes argumentos deixo duas músicas para ouvir e refletir. A pergunta é simples: o All by Myself da Celine Dion (originalmente escrita e interpretada por um tal Eric Carmen e entretanto cantada por muita, mas mesmo muita gente) é um plágio do segundo andamento do Concerto para Piano N.º 2 (Adagio Sostenuto) do compositor russo Sergei Rachmaninoff? Alerto para o facto de Rachmaninoff ter morrido em 1943 (o que inviabiliza que tenha sido este a inspirar-se na cantora canadiana, bem como para os possíveis efeitos nefastos de ouvir baladas dos anos 90 sem proteção auditiva adequada.






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